PRO CAUSA DE BEATIFICAÇÃO - PRO CAUSE DE BÉATIFICATION

Coração Cheio de Bondade e de Misericórdia

«Só Ela lhe pode valer».
Nossa Senhora à Lúcia

Uma das conclusões que mais imediata e claramente se impõem a quem recorda os factos extraordinários de Fátima é que eles são, antes de tudo, uma retumbantíssima demonstração das misericórdias do Senhor para connosco.

Precisamente no momento em que os crimes subiram ao auge, não só no mundo pagão e nos que se professam ateus, mas até entre os crentes — os escândalos de cristãos mais desmoralizados que os infiéis ê fenómeno com que por toda a parte a cada passo se tropeça — precisamente então vem Deus com novos esforços do Seu amor misericordioso, mandando a Terra a Medianeira e Dispenseira das Suas infinitas misericórdias, para acudir ao mundo pecador.

— «Só Ela lhe pode valer!» — Disse a própria Virgem à Lúcia; e Sua Santidade Pio XII, na mensagem a Portu­gal, repetia: «Invoquemo-La mais uma vez, que só Ela nos pode valer!»

Então, alvíssaras, pecadores!... O Coração Imaculado de Maria é destro como ninguém para prodigalizar essas misericórdias do Senhor. Os espantosos prodígios de conversões extraordinárias e inesperadas obtidas pela Senhora de Fátima, não só na Sua Cova da Iria, mas por onde quer que tem passado peregrina através da Europa e da América, demonstram já superabundantemente, que o estratagema usado pelo Céu para nos valer, se revela de uma eficácia fecunda.

Podem os pecadores á uma clamar afoitos, como fazia Santo Anselmo: «O Vós, que fostes feita Mãe de Deus por causa da misericórdia, tende piedade deste miserável e intercedei por mim!... O Senhora Clementíssima, no meio dos terrores que me perseguem, que Medianeira invo­carei com mais fervor do que Aquela cujas entranhas trouxeram a reconciliação do mundo? O Filho do Pai das misericórdias desceu do Céu à busca do pecador transviado e Vós, Sua Mãe bondosa, Vós, poderosa Mãe de Deus deixaríeis de acolher um infeliz que Vos implora?»[1]

Do Coração de Maria teceu o Divino Espírito Santo no Evangelho este elogio: «Maria conservabat omnia verba haec confferens in Corde Suo.[2] A primeira de todas essas palavras a ensinarem e infundirem misericórdia no Coração de Maria, que Ela arrecadou como a jóia mais delicada e preciosa, foi esta: Jesus. Revelou-Lha o Arcanjo S. Gabriel no dia da Anunciação: et vocabis nomen ejus Jesum: e pôr-Lhe-ás o nome de Jesus».[3]

Desde esse momento não houve na Terra nem no Céu favo de mel mais suave para Seus lábios do que pro­nunciar Jesus: Jesu, in ore mel mirificum.

Se longe de outivas profanas o descantava baixinho a sós consigo, inspirada pelo divino Amor, Jesus soava-Lhe à mais deliciosa melodia: in aure dulce canticum. E como perenemente Lhe ocupava a lembrança, inundava-Lhe a alma de doçura a transbordar: Jesu, dulcis memoriae e o Coração rejubilava inebriando-se de gozo inefável: dans vera cordis gaudia.

E A Virgem Mãe meditava: Jesus... quer dizer: Salvador! Deus descido à Terra a salvar pecadores: a Misericórdia infinita em socorro da infinita miséria! Et Verbum Caro factum est: O Verbo humaniza-se...

A Misericórdia faz-se carne no meu seio! O sangue que Me pulsa no Coração e Me corre nas veias é que vai dando e alimentando a vida humana à Misericórdia divina!... Vivo ego jam non ego: e eu vivo, mas não sou eu que vivo; é o Verbo, é Jesus, é a Misericórdia que vive em Mim!...

E enquanto assim meditava, o Espírito Santo ia-Lhe afeiçoando, unificando a alma, o Coração e a vida com essa infinita Misericórdia que em Seu seio encarnara. Desde esse momento Maria está constituída Mãe de Misericórdia por antonomásia.

Se Jesus, ao encetar o caminho que vai percorrer, caminho todo de misericórdia e verdade[4], exulta como um gigante, também a Virgem Santíssima unida a Jesus no mesmo itinerário exulta: eti exultavit spiritus meus in Deo Salvatore meo; exulta nesse Salvador e vê já com regozijo a Sua misericórdia a descer de geração em geração: et misericordia ejus a progenie in progenies.[5]

Jesus nasce... Jesus cresce... Os Evangelhos guardam religioso silêncio sobre quase todas as palavras do Salvador, durante os trinta anos de vida oculta. E que ficavam esculpidas noutro Livro mais sagrado: no Evangelho vivo do Coração de Maria: Maria autem conservabat omnia verba haec conferens in Corde suo. Não existiu nem jamais existirá terreno tão produtivo da palavra divina, que é semente de vida, como o Coração de Maria; ali germina ela não cento, mas mais do que mil por um.

Quem poderá portanto medir a extensão, a profundidade. a latitude, a imensidade da misericórdia do Cora­ção Imaculado de Maria? Porque as palavras de Jesus são todas misericórdia. Ele mesmo ensinará que da abundância do coração falam os lábios; ora o que mais abundava em Seu Divino Coração, se assim é licito expressar-nos, era a misericórdia: Cor Jesu patiens et multae miscricor­diae: Jesus paciente e de muita misericórdia — reza a Igreja.

Logo, ao sair Jesus da Casa materna, para dar começo à vida pública, deixava todo a florir e a frutificar misericórdia o Coração de Sua Mãe. Maria Santíssima era o mais suave perfume da Misericórdia de Seu Filho. Assim como se não pode ter na mão, por largo tempo, um pomo odorífero, diz algures S. Bernardo, sem que fique a mão perfumada, assim Maria vivendo tanto tempo em contacto com Jesus, que é a mesma Misericórdia, não podia deixar de Se tornar também Ela e para sempre misericórdia.

Pelos frutos conhecereis a árvore, doutrinará Jesus mais tarde. Ele, misericórdia infinita, é fruto de Maria; logo, tal fruto, tal árvore.

A vida pública de Jesus inicia-se: tudo nele é misericórdia; palavras, obras, sofrimentos: universae viae Domini misericordia et veritas. Maria segue cuidadosa os passos de Seu Filho e ninguém mais solicitamente recolhe e guarda no coração os divinos ensinamentos do Mestre Misericordioso. Vê-O no Jordão abatido, humilhado, baptizado como pecador e enquanto no fundo do Coração exclama a uníssono com o Eterno Pai: «Este é o meu Filho predi­lecto em quem tenho todas as minhas complacências», compreende mais intensamente ainda, que vem Jesus na Sua Misericórdia infinita a misturar-se com os pecadores, fazer-se pecador, sem pecar, mas tomando sobre Si os nossos pecados, para eficazmente nos remir deles.

E à Mãe de Jesus dilata-se-Lhe o Coração e quer também Ela, Imaculada, descer assim até junto dos peca­dores; sente, que é a Sua missão especial, a obrigação amorosa que Deus Lhe impõe: ir arrancá-los do pecado.

Jesus volta do deserto; começa a pregar; rodeiam-no os pecadores e os publicanos. O Seu Coração bondoso não os repele: acolhe-os benevolamente. Diz que não veio quebrar a cana rachada. Se eles O convidam, entra-lhes em casa, come com eles à mesa. E os Fariseus indignam-se; não compreendem um Messias tão estranhamente desritual, que não teme manchar a Sua santidade em contacto corri tal gente: «Que Messias é este a comer com os publicanos e pecadores: quare cum publicanis et peccatoribus man­ducat?[6]

Jesus rebate: não vim à busca de justos mas de pecadores e o que Eu quero é misericórdia! Os sãos não têm necessidade de médico, mas sim os enfermos».[7]

Maria Santíssima escutava e guardava todas estas palavras em Seu Coração e aprendia e compreendia ainda melhor a Sua vocação de Mãe de misericórdia.

Com alegorias delicadíssimas confirmava o Divino Mestre a Sua doutrina e vinham as parábolas do Bom Pastor, da ovelha e da dracma perdidas, do filho pródigo. Maria acolhia e considerava todos estes ensinamentos; via-se já possuída de uma ânsia imensa de ir em busca de todas as ovelhas tresmalhadas do rebanho de Jesus; já se considerava através dos séculos ao lado de Cristo Senhor Nosso com encargos de Boa Pastora e desde agora estendia os braços em espírito e carinhosa patenteava o Coração a todos os filhos pródigos num desejo infindo de os reconduzir todos à casa paterna.

Um dia trazem a Jesus uma adúltera colhida em flagrante delito. Os zelotes da lei querem que o Mestre a mande apedrejar: é a lei. A pobre mulher, confundida, aflita, nem ousa levantar a cabeça. Alvíssaras, pecadora! Nenhum pecador arrependido saiu de ao pé de Jesus sem perdão. Ele não veio à Terra a apedrejar pecadores: veio salvá-los. Vai em paz e não tornes a pecar.

A Mãe de Jesus ponderava tudo isto longamente e concluía que era assim mesmo que Ela havia de usar misericórdia. No íntimo de Seu Coração propunha profeticamente, que nenhum pecador recorreria à Sua protecção, imploraria o Seu auxílio e reclamaria o Seu socorro sem ser por Ela amparado.

No Calvário agoniza o Salvador na Cruz. Ao redor blasfemam e desdenham da Vitima os mesmos que a imo­lam. É o auge da perversidade, o mais nefando dos crimes. Em vez de bradar por vingança, Jesus descerra mansamente os lábios e implora: «Pai, perdoai-Lhes, que não sabem o que fazem». É o auge da bondade, o extremo da misericórdia!

Maria está ali de pé, junto da Cruz e escutou estas palavras, guardou-as em Seu Coração também dilacerado, também crucificado. Foi a última lição. Está consumada na ciência e na arte da Misericórdia.

Por isso, Jesus formalmente, oficialmente A constitui e declara, nesse momento tragicamente mas salutarmente culminante da História, à face do universo, Mãe de misericórdia: Ecce Mater tua.

E ei-La agora na Sua tarefa por excelência.

Já quando de longe o Espírito Santo Lhe formava o Coração de Mãe, sabia de que raça haviam de ser Seus filhos: pecadores. Por isso plasmou-lhe o Coração materno ao jeito da misericórdia. Coração capaz de sentir mais que nenhum outro as misérias de Seus filhos, que tanto quer dizer materialmente a palavra misericórdia. Traduz Santo Tomás de Aquino: misericors dicitur aliquis quasi habens miserum cor, quia scilicet afficitur miseria alterius per tristitiam, ac si esset ejus propria miseria.[8]

E a primeira feição da misericórdia, ser compassivo. S. Paulo chorava com os que choram, sofria com os que sofrem.[9] Ao ver como seus irmãos Israelitas se perdiam, vivia numa grande tristeza e torturava-se-lhe o coração.

Que diremos do Coração de Maria, de quem tudo o que se conta dos Santos, ainda que seja de um S. Paulo, se há-de afirmar num superlativo inatingível.

Também Ela, quando andou neste mundo, chorava com os que choram, sofria com os que sofrem e transverberava-se-Lhe a alma e o Coração de dor, ao contemplar não só a ruína de Israel, mas a de todas as almas que até à consumação dos séculos haviam de perecer eternamente. E experimentava essa compaixão, não por simples movi­mento de humanidade ou filantropia, mas com verdadeiras entranhas de Mãe.

«Durante Sua vida na Terra, tinha a Virgem um Coração cheio de piedade e ternura para com os homens — observa S. Jerónimo; mas tinha-o de tal forma, que ninguém pode sentir tão vivamente suas próprias aflições, como Maria sentia as alheias».[10]

Por isso, já em vida mortal procurava todos os meios de remediar os males alheios, sem Lhe escapar sequer a falta de vinho na boda de Caná, provocando nesta Sua Missão de compassiva, o primeiro milagre de Jesus.

Nisto consiste a fina-flor da misericórdia; de pouco aproveita ao miserável a misericórdia ah eia, se ela não transcende a mera compaixão. O mais essencial da misericórdia é acudir ao próximo, para lhe remediar os males.

Em Deus, como ensina S. Tomás, no lugar há pouco citado, não pode haver tristeza nem sofrimento por causa das misérias das criaturas; mas há aquela perfeição de bondade com que acode a retirar delas os males que as oprimem.

Imita este modo lá no Céu, agora, a misericórdia no Coração Imaculado de Maria; já não chora nem sofre, nem se entristece à vista dos nossos males; mas há nela coisa melhor: pode e quer como Mãe solicita livrar-nos de todos eles.

Nessa misericórdia encontramos a demência com que nos perdoa as ofensas contra Ela cometidas e com que implora perdão da Justiça divina para os nossos pecados: é Mãe clementíssima: Mater Clementissima. E nessa misericórdia que o pecador acha abrigo, para se refugiar dos raios da ira de Deus irritado contra ele: Refugium peccatorum.[11]

O Seu Coração misericordioso, piscina de milagres sara todas as enfermidades: Salus infirmorum; balsamiza e consola todas as nossas amarguras e aflições: Consolatrix afflictorum. Na misericórdia de Maria descobre a Igreja católica o penhor de todas as suas vitórias: Au­xilium Christianorum.

De Deus nos ensina a Liturgia Sagrada, que é próprio mostrar-se sempre compassivo e clemente: Deus cui pro­prium est misereri semper et parcere. Não encontram os pecadores nada mais perenemente próprio e activo no Coração de Maria do que a Sua demência e misericórdia.

Revela-nos ainda a mesma Liturgia que a manifestação máxima do poder de Deus se cifra em manifestar Miseri­córdia: Deus qui omnipotentiam Tuam parcendo maxime et miserando manifestas. O Coração de Maria de nenhum modo patenteia mais o Seu poder soberano do que no exercício da Sua misericórdia.

Terrien resumindo, escreve: «A Mãe de Deus, Mãe de todos nós, é por excelência Mãe de misericórdia. Mãe de misericórdia, porque foi unicamente criada para cooperar com a Misericórdia que nos salva; Mãe de misericórdia, porque nela e por Ela a Misericórdia até então oculta no seio de Deus, revestiu-se da nossa natureza, para com ela sentir e experimentar a nossa miséria; Mãe de misericórdia, porque é por temperamento e natureza uma emanação da Misericórdia Eterna; Mãe de misericórdia, porque pos­sui tudo o que constitui a Misericórdia, ou seja: o amor, a compaixão, a vontade de nos socorrer em nossas misérias; Mãe de misericórdia enfim, porque segundo uma tra­dição antiga, a mesma Virgem ter-se-ia dado junto de Seus filhos este título que lhe dá a Igreja de «Mãe de misericórdia».

«E o que nos ensina Santo Anselmo — continua Terrien — numa de suas orações mais impressionantes: — lem­bro-me (são palavras de Santo Anselmo), e é-me grato recordá-lo, como um dia desejosa de Vos dar a conhecer aos infelizes como Seu único socorro, revelastes Vosso nome memorável a um de Vossos servos, que se encontrava nos últimos momentos. No meio de suas angústias, dignastes-Vos aparecer-lhe: — Conheces-Me? — lhe dissestes. E como ele Vos respondesse, com voz trémula, que não Vos conhecia, Vós, Senhora nossa, na Vossa bondade lhe declarastes com voz suave e carinhosa: — Pois Eu sou a Mãe de misericórdia».[12]

E que é toda a acção de Maria através da História, desde o Cenáculo às Cruzadas; desde as Cruzadas aos Descobrimentos; dos Descobrimentos a Lepanto, a Lourdes, a Fátima senão uma epopeia gloriosa e ininterrupta das mi­sericórdias do Seu Coração Imaculado, para com os que ge­mem e choram neste vale de lágrimas?

Terminemos com Santo Afonso Maria de Ligório. «Quanta não deve pois ser a nossa confiança nesta Rai­nha, sabendo nós quanto Ela é poderosa perante Deus e cheia de misericórdia para com os homens! Tão miseri­cordiosa é Maria que não há na Terra criatura que deixe de participar dos Seus favores e bondades. Assim o reve­lou a Virgem a Santa Brígida: — Eu sou, lhe disse, Rainha do Céu e Mãe de misericórdia; para os justos sou a alegria e para os pecadores a porta por onde entram para Deus. Que não há no mundo pecador tão perdido, que não participe da minha misericórdia; pois por minha intercessão todos são menos tentados do que aliás haviam de ser. Nenhum deles a não ser o que de todo esteja repudiado por Deus (o que se deve entender da última e irrevogável sentença sobre os réprobos) nenhum deles é tão abandonado por Deus que não consiga reconciliar-se com Ele e conseguir misericórdia, se implora a Minha intercessão. Mãe de misericórdia Me chamam todos. Em verdade, a Misericórdia de Deus para com os homens me fez tão misericordiosa para com eles. Infeliz portanto, — conclui a Virgem — infeliz será eternamente na outra vida aquele que podendo nesta vida recorrer a Mim, tão compassiva com todos, não Me invoca e se perde».[13]


[1] Sti. Anselmi Oratio 51, ad. B. V.

[2] Lc II, 31.

[3] Ib. I, 31.

[4] Ps. XXIV, 10.

[5] Lc. I, 47 e segs.

[6] Mc. II, 16.

[7] Mt. IX, 13.

[8] Sum. Theol. I, q. 21, art. III.

[9] Cfr. Rom. IX, 2. XLI, r5.

[10] Santo Afonso M. de Ligório, Glórias de Maria, pg. 153, ed. cit..

[11] Santo Afonso de Ligório exigia, que os seus Missionários fi­zessem ao menos um sermão sobre a misericórdia de Maria, durante os Retiros paroquiais, de preferência no fim da Missão, porque julgava que os pecadores convertidos pelo temor do inferno não perse­verariam, se ao sentimento do terror não se unisse o amor (Cfr. P. Paulo Lecourieux, A Providência de Maria, pgs. 94-95).

[12] Terrien, obr. cit. II, p. tom. I, págs. 457-458.

[13] Glórias de Maria, pg. 31.