PRO CAUSA DE BEATIFICAÇÃO - PRO CAUSE DE BÉATIFICATION

Coração consumado em Perfeição

«Era uma Senhora perfeita em tudo».
Lúcia

Conta-se, que Fabich, conhecido artista da imagem de Nossa Senhora de Lurdes, talhada em magnífico bloco de mármore de Carrara, depois de escutar atentamente dos lábios de Bernardete a descrição minuciosa da Visão que se lhe manifestara em Massabielle, disse com intimativa à humilde Pastorinha: «Já sei como é! Agora quero que ao apresentar-te eu a imagem já feita, exclames sem hesitar: «é Ela! É Ela!»

Aconteceu porém que ao ver a menina a sobredita imagem, contemplou-a demoradamente e disse por fim: «não há dúvida: é bem bonita; mas... não é Ela! Oh, não… A diferença é como da Terra ao Céu!»

E que Bernardette tinha presenciado com seus pró­prios olhos o que o génio do artista, por mais sublime que ele seja, não será jamais capaz de idealizar nem produzir...

Discorremos sobre a beleza do Coração de Maria... Mas para que o tentámos?

Se eu soubesse pintar — escreveu a Irmã Lúcia — não seria capaz de A pintar como Ela é, porque isso sei que é impossível, assim como impossível me é dize-lo...»[1]

E se ao tratarmos da beleza física e sensível de Maria, ficamos tão aquém das aspirações de nossos corações de filhos, ufanos de termos a mais bela de todas as mães, que faremos agora, ao frisar mais demoradamente a causa dessa beleza, a Sua formosura espiritual, ou por outras palavras, a plenitude da graça e a consumada perfeição de Seu Coração?

Omnis gloria ejus Filiae Regis ab intus[2]: é no ín­timo, na alma e no coração de Maria, sobretudo, que se ostenta todo o esplendor da Sua beleza. Mas quem poderá indagar os encantos desse Horto cerrado: Hortus conclusus, Soror mea Sponsa[3], aonde só o Altíssimo tem en­trada franca?

A razão iluminada pela fé conclui, que nada deve haver de mais idealmente, divinamente consumado em perfeição, depois da humanidade de Jesus, do que o íntimo de Maria. Arca preciosíssima da Nova Aliança, destinada a encerrar não as tábuas da Lei, mas o mesmo Legislador Divino e a ser o primeiro Vaso preciosíssimo onde se ocul­tou por nove meses «o Verdadeiro Pão Vivo que desceu do Céu»,[4] qual seria a solicitude do Espírito Santo em adorná-La do mais fino oiro que saiu de Suas mãos cria­doras e santificadoras?

E sobretudo pela riqueza e formosura de Sua alma que Maria é a Obra-prima do Criador. Pelo que intrinsecamente recebeu em Si, ou seja, pela graça santificante que A adornou desde o primeiro momento da Conceição, mais participa Maria Santíssima da Beleza infinita da Di­vindade: divinas consortes naturae [5], do que propriamente pelo privilégio da Maternidade Divina, embora fosse em vista deste privilégio que Deus Lhe outorgou tanta abundância de graça e só à luz dele se haja de contemplar a plenitude dessa graça e os esplendores dessa formosura.

Assim o ensina S. Tomás de Aquino: «quanto mais um ser se aproxima do princípio donde lhe vem as pro­priedades, tanto mais participa dos efeitos desse princípio.

Por isso, Dionísio diz, que os Anjos, por estarem mais perto de Deus, participam mais da Sua Bondade infinita, do que os homens. Ora, Cristo quanto à Divindade, é o Autor da graça e quanto à humanidade é o seu instrumento... Logo a Virgem Maria que, quanto à humanidade, esteve o mais perto de Cristo que é possível, pois d’Ela tomou o Salva­dor a natureza humana, é quem entre todos recebeu de Cristo maior plenitude de graça.»[6]

Pela graça santificante, principalmente, Se comunica Deus às almas e comunica-se na medida do amor que lhes tem. Logo como não há ninguém a quem Deus tribute mais amor do que a Maria, também não há ninguém a quem tenha dispensado mais abundância da Sua graça.

Chamada a ser Mãe do Autor da graça, elegia-A o Senhor ao mesmo tempo para desempenhar a função de dispenseira de todas as graças. Logo convinha que Ela mais que ninguém, primasse na supremacia ilimitada da mesma graça.

Santo Tomás distingue três momentos, ao falar da perfeição da graça em Maria. Primeiro, o dia inicial da Sua existência: nesse a Virgem era cheia de graça e possuía a perfeição de disposição, com a qual se havia de preparar para se tornar digna Mãe de Deus. O segundo mo­mento é o da perfeição de Maria, quando em Suas entranhas encarnou o Sol de Justiça; finalmente o terceiro, o da perfeição consumada com que subiu à glória celestial[7].

Ao falarmos do Coração Imaculado, algo dissemos dessa perfeição inicial ou de disposição. Nesse instante «saiu Maria das mãos do Altíssimo perfeitíssima, radiante de beleza e preciosa aos olhos de Deus, sem a menor sombra de mancha», como na bula Ineffabilis Deus, ensina Pio IX. Despontou essa Aurora esplendidíssima mais superabundante de graça do que o maior dos Santos ou dos Anjos, não só no primeiro instante em que foram justifi­cados, mas superando muito ainda a graça a que atingiram os mais perfeitos dos Serafins, no termo da sua viagem para a eternidade.

E esta a doutrina dos teólogos. Santo Anselmo diz mais: a plenitude da graça em Maria neste primeiro ins­tante, ultrapassa tudo o que a mente humana pode conceber; e Santo Afonso de Ligório afirma, que sobrepujar não só tudo quanto foi ou há de ser concedido aos Anjos e aos homens pela liberalidade do Senhor, mas ainda tudo o que eles possam acrescentar com seus méritos às graças recebidas.[8]

Cheia de graça desde o primeiro instante: gratia plena, à primeira vista poderia parecer que essa plenitude não era susceptível de aumento. Assim seria, se a per­feição com que Maria saiu das mãos do Senhor fosse absoluta, ou a perfeição consumada que A destinava Deus. Mas perfeição absoluta só em Deus; perfeição consumada durante a vida mortal, só a de Cristo como homem, por­que já em vida era compreensor, pela visão beatifica.

A Virgem somente no último acto de amor com que a Sua alma se desprendeu do corpo, ao voar ao Céu, é que pôs termo ao crescimento da graça em Seu Coração. Em todos os momentos da vida estava cheia a transbordar de graça, porque a cada momento possuía a medida da graça e de privilégios que respondiam às circunstâncias em que se encontrava.[9] Mas essa plenitude ia crescendo sem­pre: exigia-o a Sua dignidade e os seus merecimentos. A dignidade da Mãe de Deus não exigia que Maria fosse logo desde o primeiro instante coroada da glória celeste, por isso, não exigia também, que logo possuísse a graça que no termo da vida Lhe era destinada, mas só a que convinha ao Seu estado de viadora ou à que era mister para um dia chegar à graça consumada de Mãe de Deus.

A graça em Maria, por conseguinte, podia crescer e foi de facto crescendo sempre. Crescia por novas efusões da liberalidade divina ocasionadas ou postuladas pelas circunstâncias em que se encontrava; por exemplo, no momento da Encarnação do Verbo e durante os nove meses que O trouxe encerrado em seu puríssimo ventre; no momento em que junto à Cruz tão de perto participou, como primeira remida ou pré-redimida e como corredentora, na Paixão de Seu Filho; no momento do Pentecostes em que mais que nenhum dos Apóstolos, foi enriquecida por novas e mais sublimes efusões do Espírito Santo.

 

* * *

 

Mas a graça da Mãe de Deus crescia ainda, não só pela recepção dos Sacramentos, mas particularmente e cada instante pelos actos perfeitíssimos de ardentíssima caridade com que praticava todas as Suas acções e com que constantemente Lhe pulsava o Coração abrasado.

Tendo possuído desde a Conceição a graça santifi­cante, possuiu com ela as virtudes teologais e morais e descansou sobre Ela o Espírito do Senhor enriquecendo-A com a profusão dos Seus dons. Como esta primeira graça superava já imensamente não só a graça consumada do mais elevado dos Serafins, mas até a de todos os eleito juntamente, segue-se que nunca nenhuma criatura angélica nem humana, nem todos os bem-aventurados simultaneamente se aproximaram jamais do grau eminentíssimo das virtudes de Maria e da excelsa perfeição dos dons com que o Espírito Santo A adornou.

Por isso os Autores não hesitam em atestar, que Maria teve mais fé que os Patriarcas, mais esperanças que os Profetas, mais caridade que os Justos do Antigo e Novo Testamento, mais justiça, mais fortaleza, mais sabedoria, e mais prudência que todos os Santos.

Mas ressalta muito mais a sobreexcelencia da per­feição de Nossa Senhora, se considerarmos todas essas virtudes e todos esses dons na prodigiosa e intensíssima actividade espiritual com que as exercitou; isto é se as consideramos em acto.

Os Evangelhos usam de laconismo demasiado, para as ânsias que os nossos corações experimentam de conhe­cer pormenorizadamente todos os actos de virtude da Mãe de Deus. Neles vemos a Sua fé exaltada por Sua prima Santa Isabel; no colóquio com o Arcanjo S. Gabriel salta aos olhos a Sua prudência, o Seu amor à virgindade, a Sua submissão à vontade divina, a Sua profunda humil­dade. Nos diferentes passos da Infância de Jesus, sobressai o amor delicado à Lei de Deus; a Sua piedade e o Seu espírito de oração; na Paixão do Salvador, a Sua paciên­cia e fortaleza mais que heróicas, que lhe mereceram ser celebrada pela Igreja como Rainha dos Mártires.

Apesar de tão poucos os traços delineados nas Sagra­das Páginas, os Padres e teólogos encontram nelas base bastante para concluírem facilmente, que Maria Santíssima praticou de modo admirável e sublime todas as virtudes convenientes ao Seu estado. Particularmente da Sua caridade dizem-nos, que Maria gozou desde o primeiro ins­tante da Conceição até voar ao Céu, privilégio angélico de não estar um só momento sem amar actualmente a Deus, com uma perfeição e intensidade imensamente superior à de todos os Anjos e Santos justos. «Para que houvesse no mundo — reflecte S. Alberto Magno — ao menos uma pessoa que cumprisse com a mais consumada perfeição o preceito da caridade: amarás ao Senhor com toda a tua alma, com todo o teu coração, com todas as tuas forças». Cari­dade que nem com o sono era interrompida: ego dormio sed cor meum vigilat [10]. A vigia do coração é o amor.

O Seu dormir dir-se-ia um êxtase para a alma e um suavíssimo repoiso para o corpo, como medita S. Francisco de Sales. E embora nem todos os actos de Maria fossem expressamente actos de caridade, contudo expressamente os imperava a todos esta rainha das virtudes e por isso, todos se transformavam em amor. Orava por amor, trabalhava por amor, sofria por amor, obedecia por amor.

Alguns Autores ao considerarem a excelência da ca­ridade do Coração de Maria em todos os Seus actos, dizem, que com qualquer deles, com amamentar por exemplo a Jesus uma só vez que fosse — agradava mais a Deus e merecia mais, que os Mártires em suportar a morte mais atroz.[11]

Eis o que fez da vida de Nossa Senhora uma fonte perene de merecimentos cada vez mais avantajados e ele­vou a Sua parte, à consumação última a que atingiu o Seu Coração Imaculado, quando subiu ao Céu.

Tinha razão a Lúcia, quando ao falar-nos da celeste Visão, resumia assim: «Era uma Senhora perfeita em tudo».


[1] Cfr. P. Luís Gonzaga da Fonseca, Nossa Senhora de Fátima, pág. 20, 2ª ed.

[2] Ps. XVIV, 14.

[3] Cant, IV, 12.

[4] Joan. VI, 51.

[5] Petr. I, 4.

[6] Sum. Theol. III, XXVII, 5.

[7] Sum. Theol. III, q. 27, art. 5, ad. 2.

[8] Cfr. 2.º Sem.. de Nat.

[9] Suarez, De Mysteriis Vitae Christi, D. 18, s. 1.

[10] Cant. V, 2.

[11] Cfr. Terrien, obr. cit. II p., pág. 219.