Coração
consumado em Perfeição
«Era uma Senhora perfeita em tudo».
Lúcia
Conta-se, que
Fabich, conhecido artista da imagem de Nossa Senhora de Lurdes, talhada em
magnífico bloco
de mármore de
Carrara, depois de escutar atentamente dos lábios de Bernardete a
descrição minuciosa da Visão que se lhe manifestara em Massabielle, disse com
intimativa à humilde Pastorinha: «Já sei como é! Agora quero que ao
apresentar-te eu a imagem já feita, exclames sem hesitar: «é Ela! É Ela!»
Aconteceu porém
que ao ver a menina a sobredita imagem, contemplou-a demoradamente e disse por
fim: «não há dúvida: é bem bonita; mas... não é Ela! Oh, não… A diferença é como
da Terra ao Céu!»
E que Bernardette
tinha presenciado com seus próprios olhos o que o génio do artista, por mais
sublime que ele seja, não será jamais capaz de idealizar nem produzir...
Discorremos sobre
a beleza do Coração de Maria... Mas para que o tentámos?
Se eu
soubesse pintar — escreveu a Irmã Lúcia — não seria capaz de A pintar como Ela
é, porque isso sei que é impossível, assim como impossível me é dize-lo...»
E se ao tratarmos
da beleza física e sensível de Maria, ficamos tão aquém das aspirações de nossos
corações de filhos, ufanos de termos a mais bela de todas as mães, que faremos
agora, ao frisar mais demoradamente a causa dessa beleza, a Sua formosura
espiritual, ou por outras palavras, a plenitude da graça e a consumada perfeição
de Seu Coração?
Omnis gloria ejus Filiae Regis ab intus:
é no íntimo, na alma e no coração de Maria, sobretudo, que se ostenta todo o
esplendor da Sua beleza. Mas quem poderá indagar os encantos desse Horto
cerrado: Hortus conclusus, Soror mea
Sponsa,
aonde só o Altíssimo tem entrada franca?
A
razão iluminada pela fé conclui, que nada deve haver de mais idealmente,
divinamente consumado em perfeição, depois da humanidade de Jesus, do que o
íntimo de Maria. Arca preciosíssima da Nova Aliança, destinada a encerrar não as
tábuas da Lei, mas o mesmo Legislador Divino e a ser o primeiro Vaso
preciosíssimo onde se ocultou por nove meses «o Verdadeiro Pão Vivo que desceu
do Céu»,
qual seria a solicitude do Espírito Santo em adorná-La do mais fino oiro que
saiu de Suas mãos criadoras e santificadoras?
E
sobretudo pela riqueza e formosura de Sua alma que Maria é a Obra-prima do
Criador. Pelo que intrinsecamente recebeu em Si, ou seja, pela graça
santificante que A adornou desde o primeiro momento da Conceição, mais participa
Maria Santíssima da Beleza infinita da Divindade:
divinas consortes naturae ,
do que propriamente pelo privilégio da Maternidade Divina, embora fosse em vista
deste privilégio que Deus Lhe outorgou tanta abundância de graça e só à luz dele
se haja de contemplar a plenitude dessa graça e os esplendores dessa formosura.
Assim o ensina S.
Tomás de Aquino: «quanto mais um ser se aproxima do princípio donde lhe vem as
propriedades, tanto mais participa dos efeitos desse princípio.
Por
isso, Dionísio diz, que os Anjos, por estarem mais perto de Deus, participam
mais da Sua Bondade infinita, do que os homens. Ora, Cristo quanto à Divindade,
é o Autor da graça e quanto à humanidade é o seu instrumento... Logo a Virgem
Maria que, quanto à humanidade, esteve o mais perto de Cristo que é possível,
pois d’Ela tomou o Salvador a natureza humana, é quem entre todos recebeu de
Cristo maior plenitude de graça.»
Pela graça
santificante, principalmente, Se comunica Deus às almas e comunica-se na medida
do amor que lhes tem. Logo como não há ninguém a quem Deus tribute mais amor do
que a Maria, também não há ninguém a quem tenha dispensado mais abundância da
Sua graça.
Chamada a ser Mãe
do Autor da graça, elegia-A o Senhor ao mesmo tempo para desempenhar a função de
dispenseira de todas as graças. Logo convinha que Ela mais que ninguém, primasse
na supremacia ilimitada da mesma graça.
Santo
Tomás distingue três momentos, ao falar da perfeição da graça em Maria.
Primeiro, o dia inicial da Sua existência: nesse a Virgem era cheia de graça e
possuía a perfeição de disposição, com a qual se havia de preparar para
se tornar digna Mãe de Deus. O segundo momento é o da perfeição de Maria,
quando em Suas entranhas encarnou o Sol de Justiça; finalmente o terceiro, o da
perfeição consumada com que subiu à glória celestial.
Ao falarmos do
Coração Imaculado, algo dissemos dessa perfeição inicial ou de disposição.
Nesse instante «saiu Maria das mãos do Altíssimo perfeitíssima, radiante de
beleza e preciosa aos olhos de Deus, sem a menor sombra de mancha», como na bula
Ineffabilis Deus, ensina Pio IX. Despontou essa Aurora esplendidíssima
mais superabundante de graça do que o maior dos Santos ou dos Anjos, não só no
primeiro instante em que foram justificados, mas superando muito ainda a graça
a que atingiram os mais perfeitos dos Serafins, no termo da sua viagem para a
eternidade.
E
esta a doutrina dos teólogos. Santo Anselmo diz mais: a plenitude da graça em
Maria neste primeiro instante, ultrapassa tudo o que a mente humana pode
conceber; e Santo Afonso de Ligório afirma, que sobrepujar não só tudo quanto
foi ou há de ser concedido aos Anjos e aos homens pela liberalidade do Senhor,
mas ainda tudo o que eles possam acrescentar com seus méritos às graças
recebidas.
Cheia de graça
desde o primeiro instante: gratia plena, à primeira vista poderia parecer
que essa plenitude não era susceptível de aumento. Assim seria, se a perfeição
com que Maria saiu das mãos do Senhor fosse absoluta, ou a perfeição
consumada que A destinava Deus. Mas perfeição absoluta só em Deus; perfeição
consumada durante a vida mortal, só a de Cristo como homem, porque já em vida
era compreensor, pela visão beatifica.
A
Virgem somente no último acto de amor com que a Sua alma se desprendeu do corpo,
ao voar ao Céu, é que pôs termo ao crescimento da graça em Seu Coração. Em todos
os momentos da vida estava cheia a transbordar de graça, porque a cada momento
possuía a medida da graça e de privilégios que respondiam às circunstâncias em
que se encontrava.
Mas essa plenitude ia crescendo
sempre: exigia-o a Sua dignidade e os seus merecimentos. A dignidade da Mãe de
Deus não exigia que Maria fosse logo desde o primeiro instante coroada da glória
celeste, por isso, não exigia também, que logo possuísse a graça que no termo da
vida Lhe era destinada, mas só a que convinha ao Seu estado de viadora ou
à que era mister para um dia chegar à graça consumada de Mãe de Deus.
A graça em Maria,
por conseguinte, podia crescer e foi de facto crescendo sempre. Crescia por
novas efusões da liberalidade divina ocasionadas ou postuladas pelas
circunstâncias em que se encontrava; por exemplo, no momento da Encarnação do
Verbo e durante os nove meses que O trouxe encerrado em seu puríssimo ventre; no
momento em que junto à Cruz tão de perto participou, como primeira remida ou
pré-redimida e como corredentora, na Paixão de Seu Filho; no momento do
Pentecostes em que mais que nenhum dos Apóstolos, foi enriquecida por novas e
mais sublimes efusões do Espírito Santo.
* * *
Mas a graça da Mãe
de Deus crescia ainda, não só pela recepção dos Sacramentos, mas particularmente
e cada instante pelos actos perfeitíssimos de ardentíssima caridade com que
praticava todas as Suas acções e com que constantemente Lhe pulsava o Coração
abrasado.
Tendo possuído
desde a Conceição a graça santificante, possuiu com ela as virtudes teologais e
morais e descansou sobre Ela o Espírito do Senhor enriquecendo-A com a profusão
dos Seus dons. Como esta primeira graça superava já imensamente não só a graça
consumada do mais elevado dos Serafins, mas até a de todos os eleito juntamente,
segue-se que nunca nenhuma criatura angélica nem humana, nem todos os
bem-aventurados simultaneamente se aproximaram jamais do grau eminentíssimo das
virtudes de Maria e da excelsa perfeição dos dons com que o Espírito Santo A
adornou.
Por isso os
Autores não hesitam em atestar, que Maria teve mais fé que os Patriarcas,
mais esperanças que os Profetas, mais caridade que os Justos do Antigo e Novo
Testamento, mais justiça, mais fortaleza, mais sabedoria, e mais prudência que
todos os Santos.
Mas
ressalta muito mais a sobreexcelencia da perfeição de Nossa Senhora, se
considerarmos todas essas virtudes e todos esses dons na prodigiosa e
intensíssima actividade espiritual com que as exercitou; isto é se as
consideramos em acto.
Os Evangelhos usam
de laconismo demasiado, para as ânsias que os nossos corações experimentam de
conhecer pormenorizadamente todos os actos de virtude da Mãe de Deus. Neles
vemos a Sua fé exaltada por Sua prima Santa Isabel; no colóquio com o Arcanjo S.
Gabriel salta aos olhos a Sua prudência, o Seu amor à virgindade, a Sua
submissão à vontade divina, a Sua profunda humildade. Nos diferentes passos da
Infância de Jesus, sobressai o amor delicado à Lei de Deus; a Sua piedade e o
Seu espírito de oração; na Paixão do Salvador, a Sua paciência e fortaleza mais
que heróicas, que lhe mereceram ser celebrada pela Igreja como Rainha dos
Mártires.
Apesar de tão poucos os traços delineados nas Sagradas Páginas, os Padres e
teólogos encontram nelas base bastante para concluírem facilmente, que Maria
Santíssima praticou de modo admirável e sublime todas as virtudes convenientes
ao Seu estado. Particularmente da Sua caridade dizem-nos, que Maria gozou desde
o primeiro instante da Conceição até voar ao Céu, privilégio angélico de não
estar um só momento sem amar actualmente a Deus, com uma perfeição e intensidade
imensamente superior à de todos os Anjos e Santos justos. «Para que houvesse no
mundo — reflecte S. Alberto Magno — ao menos uma pessoa que cumprisse com a mais
consumada perfeição o preceito da caridade: amarás ao Senhor com toda a tua
alma, com todo o teu coração, com todas as tuas forças». Caridade que nem com o
sono era interrompida: ego dormio sed
cor meum vigilat .
A vigia do coração é o amor.
O Seu dormir
dir-se-ia um êxtase para a alma e um suavíssimo repoiso para o corpo, como
medita S. Francisco de Sales. E embora nem todos os actos de Maria fossem
expressamente actos de caridade, contudo expressamente os imperava a
todos esta rainha das virtudes e por isso, todos se transformavam em amor. Orava
por amor, trabalhava por amor, sofria por amor, obedecia por amor.
Alguns Autores ao considerarem a excelência da caridade do Coração de Maria em
todos os Seus actos, dizem, que com qualquer deles, com amamentar por exemplo a
Jesus uma só vez que fosse — agradava mais a Deus e merecia mais, que os
Mártires em suportar a morte mais atroz.
Eis o que fez da
vida de Nossa Senhora uma fonte perene de merecimentos cada vez mais avantajados
e elevou a Sua parte, à consumação última a que atingiu o Seu Coração
Imaculado, quando subiu ao Céu.
Tinha razão a
Lúcia, quando ao falar-nos da celeste Visão, resumia assim: «Era uma Senhora
perfeita em tudo».
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