PRO CAUSA DE BEATIFICAÇÃO - PRO CAUSE DE BÉATIFICATION

Coração Virginal

«Os pecados que levam mais almas para o inferno
são os pecados da carne».
Jacinta

«Não ofendam mais a Nosso Senhor, que já está muito ofendido», inculcava num ar triste e magoado, a Virgem de Fátima ao mundo prevaricador, por meio dos ­Pastorinhos; e fez-lhes ver, que os pecados com que mais frequentemente se injuria a Deus e que levam mais almas para o inferno são os pecados da carne.

Por isso, vem Ela do Céu a acudir a tamanha des­graça. «Só Ela lhe pode valer. Só a pureza virginal do Seu Coração, posta entre o Céu e a Terra pecadora, terá mão na justiça divina, por um lado, que nos não arrase; e por outro, se ostentará força poderosa para arrancar, com Seus encantos a tantos que atolados no lodo das pai­xões, vivem em eminente perigo de se perder eternamente.

O Coração Sagrado de Maria mostrou-se aos videntes rodeado de espinhos, significativos dos ultrajes que Lhe dirigem os pecadores ingratos; entre os mais pungentes, destacam-se as blasfémias, contra a virginalíssima pureza de nossa Mãe do Céu. Depois de meditarmos como o Seu Coração é imaculado, contemplar agora o especialíssimo esplendor que lhe comunica a virgindade, é já um desagravo e novo estimulo para o amar e melhor imitar a Sua pureza.

Falar do Coração Virginal de Maria, significa primei­ramente recordar o dogma de fé, pelo qual confessamos, com o Magistério da Igreja e com o Concílio Lateranense (a. 649), que Maria Santíssima foi virgem, antes do parto, no parto e depois do parto.

Privilégio singular que nos ensina, em primeiro lugar, que Maria, verdadeira Mãe de Jesus, o foi sem quebra da Sua integridade corporal. A conceição de Jesus foi obra toda divina, milagre do Espírito Santo: «O Espírito Santo virá a Ti e a virtude do Altíssimo Te cobrirá em Sua sombra»[1]. Ela era o Horto cerrado do Senhor: Virgem antes do parto.

Virgem no parto: o mesmo prodígio que Jesus mais tarde ressuscitado realizará, ao sair do sepulcro, sem des­cerrar a pedra, e ao penetrar no Cenáculo, sem abrir as portas, realizou ao nascer em Belém, à meia-noite, sem correr o véu do tabernáculo sacratíssimo em que nove meses se ocultou; tal qual a luz do sol ao passar pela vidraça: natus ex Maria Virgine: nasceu de Maria Virgem. Virgem depois do parto: das palavras de Nossa Senhora ao Arcanjo S. Gabriel: virum non cognosco: não conheço varão, inferem os Padres e com eles toda a Igreja, a resolução em que estava Maria de permanecer sempre intacta na Sua integridade corporal e apodam de insânia, blasfémia, sacrilégio, impiedade, perfídia, heresia, a afir­mação contrária de Helvídio, Joviniano e dos Apolinaristas.

Nunca em Maria Santíssima houve obra externa que de longe se pudesse interpretar violação da Sua integri­dade, innocens manibus. Mais ainda: gozou de total isen­ção de tudo o que nesta matéria se pudesse parecer com a satisfação deliberada ou até indeliberada dos sentidos: é a Virgem por antonomásia, na integridade corporal.

Mas Coração virginal abrange muito mais: innocens manibus et mundo corde. Significa também isenção de qualquer quebra espiritual deliberada ou indeliberada em pensamentos, desejos e afectos. Nunca o céu limpidíssimo da alma de Maria pôde jamais ser toldado pela mais leve nuvem ou sombra que se erguera da matéria. Isenta por um lado, da concupiscência e firme por outro, na resolução de ser sempre e só de Deus, todos os seus pensamentos, desejos e afectos pairavam perenemente nas regiões onde não atingem as perturbações da argila quebradiça do corpo.

«O Filho de Deus — escreve S. João Crisóstomo — não escolheu por Mãe, mulher rica ou poderosa, mas a Virgem Bendita, com a alma ornada de todas as virtudes. Maria puríssima, exalçada pela Sua castidade acima de toda a humana natureza, mereceu conceber em Seu seio a Cristo Senhor Nosso. Corramos a lançar-nos aos pés desta Virgem Augusta e Mãe de Deus, esforçando-nos por alcan­çar o imenso benefício da Sua protecção... A Bem-aven­turada Maria sempre Virgem, é meus Irmãos, um milagre deslumbrante de magnificência... As coisas criadas visí­veis e invisíveis não podem apresentar-nos nada que se aproxime da grandeza e da excelência da Bem-aventurada Virgem Maria. Só Ela é ao mesmo tempo Serva e Mãe; só Ela Virgem e Mãe!»[2]

 

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Coração Virginal quer significar ainda mais, porque até aqui consideramos por assim dizer, só o lado negativo: isenção de quebra corporal, isenção de quebra espiritual na virgindade.

Tudo o que há de positivamente belo na virgindade: o quam pulchra est casta generatio cum claritate! — fez de Maria o mais perfeito modelo das virgens. Dela havia de nascer a Linda Flor que a Igreja chama: Flos Matris Virginis: Jesus, Flor da Virgem Mãe, o mais deslumbrante prodígio de pureza e de virgindade que entre nós realizou a Sabedoria infinita; por isso, ex fructibus eorum cognoscetis eos: pelo fruto se conhece a árvore. E à luz da Virgindade de Jesus que melhor se vislumbra o que seria a perfeição da Virgindade de Sua Mãe e particularmente a virgindade de Seu Coração.

A crença popular compraz-se em considerar Nossa Senhora a votar a Deus a Sua Virgindade desde a mais tenra idade no Templo. Mas toda a vida de Maria foi desde o primeiro instante da Conceição um voto total a Deus no qual toda se Lhe deu em corpo e alma, do mais perfeito modo. Portanto a Sua Virgindade é um dom sagrado e consagrado ao Senhor, para só a Ele pertencer inteiramente desde esse momento.

É uma Virgindade de amor. Deus mostrando-Se-Lhe no íntimo da alma e atraindo-A toda a Si desde o começo do uso da razão, apareceu-Lhe tão belo, tão infinitamente amável, que para logo O quis amar a Ele unicamente com todo o coração, e não amar senão a Ele e nesse amor tudo. Lhe deu; a Sua virgindade é portanto acima de tudo, de amor; acima de tudo, virgindade de Coração. E desabro­char espontâneo da primeira graça recebida, logo na Sua Imaculada Conceição, com a qual sem demora Se doou in­teiramente ao Senhor.

Não, a Terra não conhecia o que era a virgindade e muito menos, virgindade de amor, isto é, virgindade-consagração a Deus, por amor exclusivo e total; é no Coração Imaculado de Maria que pela primeira vez germina, com toda a pujança e frescor essa flor peregrina, criação do Es­pírito Santo, para dar à Terra, por obra do mesmo Espírito Santo, Aquele Fruto divino que desde toda a eternidade é gerado virginalmente pelo Pai, o Verbo Encarnado, Jesus!

Foi o amor que desde o primeiro momento sagrou a virgindade de Maria; é o amor a luz suavíssima que a inunda dos mais deslumbrantes esplendores: o quam pulchra est casta generatio cum claritate! E como o amor de Nossa Senhora durante a Sua vida mortal, não cessa um instante de crescer em intensidade e beleza, também não há um instante em que a Sua virgindade e toda a Sua en­trega a Deus em corpo e alma, não se vá tornando cada dia mais bela e esplendente!

 

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Por sua vez, a perfeição da Sua virgindade mostra-nos a perfeição do Seu amor. Ninguém ama com maior intensidade e perfeição do que aquele que mais integral e absolutamente se entrega. Nada há que maior capaci­dade comunique ao amor do que estar inteiro, do que a virgindade desse mesmo amor. «Concentrando todos os seus afectos em Deus — escreve Bainvel — a virgem cristã, quer dizer, a de coração verdadeiramente virginal, vai hau­rir em troca na imensidade do amor divino, não sei que potência multiplicada de amar; um coração grande, na expressão das Escrituras, como as areias do mar uma necessidade de se expandir sobre todas as misérias; de se dedicar a todas as causas belas e boas; de ir a toda a parte aonde há algum bem a fazer. O coração virginal no contacto íntimo com Deus, toma qualquer coisa do mesmo Coração de Deus, que ama tudo o que fez e não exclui nada nem ninguém do Seu amor».[3]

Pois bem, elevemos tudo isto a um superlativo ina­tingível, e teremos uma pálida ideia do que é a virgindade de amor em Maria, o que é o Seu Coração Virginal, feito como nenhum a imagem do Coração de Deus. O Seu amor virginal faz do Seu Coração e do de Deus um só Coração e assim identificada, abre-se de par em par na mais per­feita caridade, abraçando o universo inteiro e todos os interesses de Deus e das almas, revelando-se deste modo aos homens como uma das melhores manifestações do Amor Divino à Humanidade.

Coração virginal, virgindade de amor, só em Maria se encontra neste grau inexcedível! Porque é inexcedível na virgindade de amor, ninguém a excede também no amor virginal, com que ama a Deus Pai e a Seu Filho, Jesus: amor perfeitíssimo, sobrenatural, incomparavelmente desinteressado; dava-Se sem se buscar a Si mesma; sem procurar a alegria de Se sentir amada e sem buscar para Si o gosto e alegria de amar.

Concluamos com as palavras de S. Bernardo: unum est in quo nec primam similem visa est, nec habere sequentem, gaudia Matris habens cum virginitatis honore: é privilégio exclusivo de Maria, nunca visto antes nem depois dela: unir aos gozos da maternidade a honra da virgindade.[4]


[1] Lc. I, 35.

[2] Apud Metap. Hr.

[3] J.V. Bainvel, Le Saint Coeur de Marie, pg. 75, 1922.

[4]  Sermo IV, de Assumptione.