PRO CAUSA DE BEATIFICAÇÃO - PRO CAUSE DE BÉATIFICATION

Coração Imaculado

O meu Imaculado Coração será o teu refúgio».
Nossa Senhora à Lúcia

Predilecta do Altíssimo, intimamente unida ao Pai com laços que a mais ninguém será dado possuir, Mãe do Verbo Divino, Sacrário precioso e Esposa do Espírito Santo, tinha necessariamente o Coração de Maria de estar ador­nado com todos as prerrogativas condignas de tão inco­mensurável dignidade e grandeza.

O primeiro adorno privilegiado desse Coração, logo desde o primeiro instante em que pulsou no seio materno, é ser Imaculado.

E dir-se-ia que este, entre todos os predicativos, es­tima a Virgem quando se refere ao Seu Coração. Ainda antes da definição dogmática por Pio IX, em várias revelações e agora em Fátima é assim que o designa: Coração Imaculado ou explícita ou equivalentemente.

Na revelação da Medalha Milagrosa a Santa Catarina Labouré em 1830, lá se lia em oval a legenda: «O Maria concebida sem pecado, rogai por nós que recorremos a Vós». Em Nossa Senhora das Vitórias, seis anos depois, ouvia o P. Des Genettes as palavras: «consagra a tua igreja e paróquia ao Santíssimo e Imaculado Coração de Maria».

O Escapulário Verde, assim chamado, apareceu com a Imagem do Coração de Maria trespassado por uma espada e o dístico: «Coração Imaculado de Maria, rogai por nós pecadores agora e na hora da nossa morte».

Em Fátima, com este epíteto se designa o Coração de Maria habitualmente ou quando fala a Senhora ou quando a Ela se referem os videntes: «Ele (Jesus) quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração. O Meu imaculado coração será o teu refúgio e o caminho que te conduzirá a Deus». «Sacrificai-vos pelos pecadores e dizei muitas vezes, em especial sempre que fizerdes algum sacrifício: ó meu Jesus, é por Vosso amor, pela conversão dos pecadores e em reparação pelos pecados cometidos contra o imaculado Coração de Maria». «Vistes o inferno para onde vão as almas dos pobres pecadores. Para as salvar Deus quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração». «Para a impedir (a guerra) virei pedir a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração... Por fim o meu Imaculado Coração triunfará».

Tudo isto são palavras de Maria Santíssima à Lúcia.

Até a Igreja se acomodou na sua liturgia a esta designação; antes de Pio XII decretar como universal a festa do Coração de Maria, o ofício e a Missa aprovada para alguns lugares era: do Puríssimo Coração de Maria. A nova Missa e ofício intitula-se: do Imaculado Coração de Maria.

No acto de consagração do mundo feito por Sua Santidade Pio XII assim se expressa também: «A Vós, ao Vosso Coração Imaculado, confiamos, entregamos, consa­gramos, não só a Santa Igreja... mas também o mundo todo...»

Tudo nos mostra quanto ao Céu e a Maria lhes é caro este privilégio de imaculada no corpo, na alma, na fé e no amor, como dizia Pio X. E que chamar Imaculado ao Seu Coração, lembra em primeiro lugar, o dogma definido por Pio IX na bula Ineffabilis Deus, a 8 de Dezembro de 1854, em que declarou, pronunciou e definiu que a doutrina que sustenta que a Beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante da Sua Conceição, foi por uma graça e privilégio singular de Deus todo-poderoso, e em vista dos merecimentos de Jesus Cristo Salvador do género humano, preservada de toda a mácula da culpa original, foi reve­lada por Deus e como tal deve ser firme e constantemente crida por todos os fiéis».

A mesma bula dá em resumo as razões desse dogma, quando atesta, que tal verdade se encontra «admiravelmente elucidada e proposta pela palavra divina, pela venerável tradição, pelo constante sentir da Igreja, pela singular conformidade dos Prelados católicos e dos fiéis e pelos admiráveis testemunhos dos Sumos Pontífices».

Mas que ninguém imagine esse privilégio, como uma coisa meramente negativa: uma simples isenção de pe­cado, do pecado que todos herdamos de Adão.

Ao afirmarmos que a Virgem não foi manchada de culpa original, não asseveramos só a ausência de toda a mácula e reato de pecado de origem em sua alma, mas também a presença da graça santificante com que desde o primeiro instante A adornou o Espírito Santo.

Na verdade, se o pecado original consiste na priva­ção da graça santificante com que nascem todos os filhos de Adão, estar isenta de pecado original significa ser con­cebida em graça. E que haverá ai de mais positivo?

Ora quem poderá expressar quão singular privilégio tosse para Maria Santíssima aparecer neste mundo, logo no primeiro instante da existência, tão diferente de todos os Outros filhos de Adão?!

Ainda que a graça inicial com que a Virgem foi concebida, não superasse a que recebe qualquer criancinha no baptismo, ainda assim seria uni privilégio singularíssimo e motivo sobrado para os Santos Padres a proclamarem: «Lírio entre espinhos, Terra sempre bendita, e livre de todo o contágio do pecado... Paraíso irrepreensível, resplandecentíssimo... plantado pelo próprio Deus e inacessível a todas as ciladas da serpente venenosa, Lenho incorruptível que nunca pôde ser corroído pelo verme do pecado...» [1]

Realmente todos os filhos de Adão, ao serem conce­bidos, por isso que contra a vontade de Deus estão priva­dos da Sua graça, trazem estes dois ferretes de maldição na fronte: escravo de satanás e inimigo de Deus.

Só a Virgem singularissimamente privilegiada escapa a esta dupla maldição e ao surgir radiosa no horizonte da existência, como a aurora mais bela do mais claro dia, ergue-se esbelta e soberana com o duplo diadema de Filha e Predilecta de Deus!

Não há entre os mortais quem neste ponto possa competir com Maria. Deus pródigo em seus dons, só neste o não foi, porque quis fazer dele o apanágio exclu­sivo da Mãe do Verbo!

Vários Santos foram santificados antes de nascer, como S. João Baptista e segundo a opinião dos Doutores da Igreja, S. José, Esposo de Maria; mas ninguém, a não ser a Mãe de Deus, foi preservado da mancha original. A graça que a eles lhes foi concedida nada tem que ver com o privilégio outorgado a Nossa Senhora. Eles afinal não se distinguem de nós, senão em terem sido livres mais cedo. Maria é a única que nem um só instante teve pecado na alma. Só a ela pode dizer Deus: tota pulchra es, amica mea, et macula originalis non est in Te»!

Por isso a Virgem Santíssima ao revelar-se em Lourdes a Bernardette, se chamou a Si mesma «a Ima­culada Conceição».

 

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Ao mesmo tempo que é para Maria um privilégio singularíssimo, para Jesus é uma glória suma.

A virtude e os méritos de Cristo em remir-nos atin­gem valor infinito; pode por conseguinte, conceber-se um duplo modo de redenção: um preservativo e outro liberativo do pecado. Ora mais excelente se mostra o primeiro modo, que o segundo; maior gratia impenditur illi cui conservatur innocentia quam cui remittitur culpa — reflecte Santo Agostinho — Maior graça e maior dom de Cristo a Maria foi não permitir que Ela fosse manchada, do que seria livrá-La da mancha contraída na origem.

Evidentemente: também por Maria morreu Cristo: «pro omnibus mortuus est»[2]; para todos foi precisa a Redenção. Mas a Virgem Santíssima é as primícias dessa Redenção, a Primogénita do Redentor, como lhe chama S. Bernardino: Primogenita Redemptoris Filii sui Jesu fuit Beata Virgo et plus pro illa redimenda venit quam pro omni alia. Pela Sua Mãe começou Jesus a grande obra da Redenção; a Ela se destinou a melhor aplicação dos méritos de Jesus, porque os outros mortais são libertados; Maria foi preservada de toda a culpa.

Em Maria restaurou Deus e reintegrou com vanta­gem quanto de graça e de justiça original havia no estado de inocência. Nós, embora nobilitados pela graça recebida no baptismo, e ostentando por isso, os pergaminhos de filhos de Deus e herdeiros do Céu, não obstante, se bus­carmos em nossa origem ou em nossos maiores a razão desses pergaminhos, não a encontramos: todos nascemos vis escravos. Em Maria não sucede assim; predestinou-A Seu Filho tão santa, tão nobre desde a origem, que nem um só instante existiu que não fosse filha de Deus, her­deira do Céu, Senhora e Rainha.

 

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Mais esplendoroso nos aparece este privilégio de Maria Santíssima, se considerarmos a perfeição da graça com que a Sua alma saiu das mãos do Criador.

Não houve nem há-de haver criatura que no primeiro instante da sua primeira santificação recebesse tanta graça. Unicuique — diz S. Tomás de Aquino — a Deo datur gratia secundum hoc ad quod eligitur: a cada qual é dada a graça na medida da dignidade para que é escolhido[3]. Ora, sendo a dignidade de Maria incomen­surável, bem se deixa ver, que não tem medida a graça a Ela outorgada, no momento não só da Encarnação do Verbo em Suas puríssimas entranhas, mas desde que Ela mesma foi concebida; para que, como ensinam os teólogos, o princípio correspondesse ao termo. Suarez afirma ousa­damente, que a graça recebida pela Virgem na Sua primeira santificação superou em intensidade e perfeição a graça consumada dos Anjos e dos homens. Alguns teó­logos vão ainda mais longe sustentando como provável, que toda a graça concedida a Maria, no primeiro instante da Sua Conceição, ultrapassou a graça de todos os Anjos e Santos juntamente e aplicam-Lhe neste sentido o salmo: «fundamenta ejus in montibus sanctis: nas culminâncias onde terminaram os Santos, aí assenta Maria os Seus alicerces[4].

Não admira portanto, que tão querido ao Coração de Maria se apresente este privilégio. O pensar predomi­nante dos teólogos é que Nossa Senhora, no primeiro instante da Sua existência, foi extraordinariamente agraciada com o uso da razão, para poder logo jubilar no Senhor, por uni privilégio tão enorme e já nesse momento Lhe sair espontâneo da alma em flor o Seu canto glorioso: Magnificat anima mea Dominum et exultavit spiritus meus in Deo Sadvatore meo... quia fecit mihi magna qui potens est».

Há até teólogos que não hesitam em ensinar, que esse uso de razão lhe perdurou para sempre desde esse primeiro instante[5], sem ter que esperar pelo nascimento. Se a alguns Santos, como por exemplo a S. Nicolau de Flue, concedeu Deus o uso da razão, no momento em que pelo baptismo o revestiu da Sua graça, porque não liberalizaria a Sua Mãe dom parecido, logo ao adorná-la na Conceição com a primeira graça?

Essa santificação original de Maria fez-se sentir, como lembra Campana, em toda a Sua natureza: «pro­duziu nela uma constituição moral perfeita, admirável de integridade e de frescor. A graça da Sua primeira santificação pôs um elemento de extraordinária perfeição na vontade, na inteligência e enfim na sensibilidade de Maria»[6]. Portanto foi particularmente adorno esplên­dido de Seu Santíssimo Coração.

 

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Ao dizermos porém Coração Imaculado, não significamos apenas que Maria apareceu no mundo sem man­cha de culpa original; abrangemos muito mais: o Seu Coração é Imaculado e Imaculável.

A razão que A faz aparecer sem pecado original exige que jamais a culpa A possa manchar. «Os Santos Padres e Escritores Eclesiásticos — afirma Pio IX na bula Ineffabilis Deus, — firmados nas palavras divinas, nada tiveram mais a peito nos livros que escreveram para explicar a Escritura, para defender os dogmas e instruir os fiéis, do que louvar e exaltar à porfia, de mil maneiras e nos termos mais encomiásticos, a perfeita santidade de Maria, a Sua excelsa dignidade, a Sua preservação de toda o pecado e a gloriosa vitória que alcançou do inimigo do género humano».

Em toda a Sua vida, pois, não se manchou esse Coração Imaculado, não dizemos só com qualquer pecado mesmo semideliberado, nem mortal nem venial, mas nem sequer com a menor imperfeição deliberada. «Non fuisset idonea Mater Dei si peccasset aliquando» — atesta S. Tomás de Aquino.[7]

Que Nossa Senhora nunca contraiu de facto nenhum pecado, nem sequer venial, é dogma de fé; assim o decla­rou o Concilio Tridentino, na sessão VI, no cânone 23: «se alguém afirmar que qualquer homem, uma vez justi­ficado, já não pode pecar nem perder a graça e por conseguinte, quem cai e peca, é porque verdadeiramente nunca foi justificado: ou pelo contrário, que pode o homem toda a vida evitar todos os pecados, mesmos os veniais, sem um privilégio especial de Deus, como da Bem-aventurada Virgem crê a Igreja, seja anátema».

Que nunca contraiu imperfeição deliberada, ates­tam-no os mais eminentes teólogos. Fale por todos S. Ber­nardino, que em louvor a Maria Santíssima tem primazias: «Nada há nela de tenebroso, ou escurecido, ou menos brilhante, nem sequer alguma coisa de tíbio, mas tudo é fervorosíssimo: nihil in ea non dico tenebrosum, sed obscurum saltem, vel minus lucidum, sed nec tepidum quidem aliquid, aut non ferventissimum».

Os teólogos ao enaltecer a imaculabilidade de Maria vão mais longe; afirmam que não só não pecou, mas que moralmente estava impossibilitada de pecar. A abundância de graças de que Deus A adornou e rodeou era tal, que qualquer outra alma com elas ficaria impecável, quanto mais a Virgem Santíssima em quem não havia concupiscência e tudo era caridade e amor de Deus! A intensidade de luz com que Deus iluminou a Sua inteligência, tornava impossível qualquer desvio da vontade na prossecução do bem. Nenhum poder tinha sobre a Sua alma ou sobre os Seus afectos e sentimentos deli­berados nem o demónio, nem o mundo, nem a carne.

Em suma: o ardente zelo da própria perfeição, a mais perfeita generosidade e delicadeza de consciência eram o apanágio de Maria, que a levavam a praticar todas as virtudes com perfeição suma.


[1] Pio IX, Ineffabilis Deus.

[2] 11 Cor. V, 15.

[3] S. Theol. III p. q. 27, a. 5.

[4] Ps. 1, XXXVI, 1.

[5] Cfr. E. Campana, obr. cit. II, 59-60.

[6] Ib. 61.

[7] Sum. Theo. III., q. 27, art. 4.