PRO CAUSA DE BEATIFICAÇÃO - PRO CAUSE DE BÉATIFICATION

O Coração da Predilecta do Altíssimo

«Gosto tanto de Nosso Senhor e de Nossa Senhora,
que nunca me canso de dizer que os amo».
Jacinta

Esforçámo-nos por explicar, o mais claramente possível, o significado desta expressão: Coração de Maria. Objecto singular da piedade cristã, esplende com tais fulgores, que a nossa inteligência, logo ao primeiro con­tacto, entrevê, sem mais raciocínio, ser ele depois do de Jesus, de qualquer modo que o consideremos, o que há de mais excelente entre as obras do Senhor.

Quem presumirá portanto — diremos com S. Bernardino — «a não ser apoiado pelo divino Oráculo, quem presumirá com lábios manchados, dizer qualquer coisa, por pequena ou grande que seja, da verdadeira Mãe de Homem-Deus, a quem o Pai predestinou antes de todos os séculos para ser perpetuamente a Virgem digníssima, o Filho elegeu por Mãe e o Espírito Santo preparou para domicílio de toda a graça? Com que palavras eu, homen­zinho, lembrarei os altíssimos sentimentos do Seu Coração virginal, expressos por seus lábios santíssimos, para o que não bastam as línguas de todos os homens nem as de todos os Anjos? [1]

Predestinou-A o Altíssimo desde toda a eternidade para Mãe de Deus e consequentemente, para todas as prerrogativas que predispositivamente ou consequentemente derivam dessa dignidade suprema. A dignidade da Mãe de Deus porém, raia no infinito; tais proporções atinge, que nem Deus na Sua Omnipotência pode criar dignidade mais augusta. «Maria por ser Mãe de Deus tem uma certa dignidade infinita, do Bem infinito que é Deus e por este lado nada se pode criar de melhor», ensina S. Tomás de Aquino e de modo parecido se exprime

S. Boaventura «ser Mãe de Deus e graça máxima que conferir-Se pode a uma criatura. Maior do que esta não pode Deus fazer»[2].

«A maternidade divina é a pérola mais deslumbrante do diadema de glória que cinge a fronte da excelsa Virgem e pelo simples facto de ser Mãe de Deus, acha-se colocada a uma altura vertiginosa de dignidade, a uma elevação de todo incomparável»[3].

Quem então compreenderá, em si ou nas suas prer­rogativas, a excelência de Maria Santíssima? Quem sobretudo penetrará os segredos íntimos de Seu Coração?

Em virtude da Maternidade divina estabelecem-se entre a Virgem Maria e a Santíssima Trindade relações inefáveis que não existem nem podem existir entre as demais criaturas, sejam elas os mais elevados coros an­gélicos.

«O Eterno Pai determinou, por um conselho admi­rável, que a Virgem conceba e dê à luz no tempo, Aquele que Ele gera perpetuamente desde toda a eternidade. Deste modo associa-A à sua geração fazendo-A Mãe de um mesmo Filho com Ele»[4].

Que maravilha! E mister essencialmente a união de Maria com o Eterno Pai, para que nasça não simples­mente um Deus, nem simplesmente um homem, mas para que nasça Jesus Cristo, Homem-Deus, ao mesmo tempo Filho do homem e Filho de Deus[5]. Toda a paternidade vem de Deus que é a fonte de toda a fecundação e Maria participa e coopera intimamente nesta fecundidade de Deus, como ninguém, para ser Mãe de Jesus.

Por isso, alguns Autores chamam Maria Esposa do Pai. «O Filho de Deus encarnou, com efeito, no seio da Virgem. Nesta geração temporal não tem Pai, como na geração eterna não tem Mãe. Mas não é no mesmo sen­tido: é em sentido absoluto que Ele não tem mãe na geração eterna; porém é num sentido relativo que não tem Pai na geração temporal: no sentido de uma geração temporal que destruísse a virgindade. Quanto ao mais, nesta geração temporal, continua a ter por Pai Aquele que O gera eternamente, com uma paternidade continua, cuja geração temporal no seio de Maria não é por conse­quência mais do que uma extensão, por assim dizer e uma produção. Maria, numa palavra, não é a Mãe do Filho de Deus, do mesmo modo que Deus é Pai, por virtude própria, mas como Lhe anuncia o Anjo, por virtude do Altíssimo que A cobriu com Sua sombra[6].

Terrien adverte contudo, que nesta designação de Esposa do Pai, se há-de cuidadosamente evitar qualquer equívoco, pois não é pela substância que Jesus recebe do Pai, que Ele é homem, nem é pela substância que recebe da Mãe que é Deus.

Mas muito de aprovar é a denominação dada a Maria de Filha de Deus, de Filha do Pai, de Primogénita, de Pilha única. São expressões frequentes dos Santos Padres; entre os gregos é usualíssimo chamar-Lhe Filha de Deus.

A Santa Igreja não só a denomina Filha de Deus, mas única Filha de Deus, única Virgem, única Imaculada. O que nos faz filhos de Deus é a graça santificante; e se ninguém foi por antonomásia cheia de graça, senão Maria, ninguém por antonomásia é Filha de Deus senão Maria. E como a plenitude da graça Lhe foi concedida em proporção à dignidade infinita de Mãe de Deus, quem presu­mirá compreender, o que foi essa graça e consequente­mente, o que são esses laços que A ligam a Deus como Filha?

Por isso, se designa também Primogénita, por ser a primeira, por assim dizer que se apresenta à mente divina, quando em seus eternos conselhos decide criar filhos de adopção, modelados pelo Verbo Encarnado. Entre todos os filhos de Deus adoptivos, é Maria como que a mais velha e a Ela, como a primogénita, concede o Eterno Pai prerrogativas e privilégios dignos de tal primogenitura [7].

«Depois disto — exclama belamente Bossuet — ó Ma­ria, ainda que eu tivesse o espírito de um Anjo da mais sublime jerarquia, os meus conceitos seriam muito pobres para compreender a união perfeitíssima do Pai Eterno convosco. Associando-Vos à Sua geração eterna, fez-Vos Mãe de um mesmo Filho com Ele. Quis que Vós fôsseis a Mãe de Seu Filho único e ser Ele o Pai do Vosso Filho.

Ó prodígio, ó abismo de caridade! Que inteligência se não perderá na consideração destas complacência incom­preensíveis que teve por Vós, depois que Vós d’Ele Vos aproximais tão de perto por este Filho comum, laço invio­lável da Vossa santa aliança, penhor das afeições mútuas que Vos tributastes uni ao Outro; Ele na plenitude de uma Divindade impassível; Vós revestida, para Lhe obedecer, de uma carne mortal!»[8]

 

* * *

 

Quem poderá então imaginar o que seriam os quila­tes delicadíssimos dados por Deus ao Coração de Maria?

Ao Coração desta Sua Filha única; desta Sua Predilecta, da Primogénita?

Antes de mais nada, foi o Coração de pura criatura criado por Deus, para por ele ser amado plenamente, a Seu gosto Divino: o melhor instrumento de amor à Santíssima Trindade. Nunca outro coração puramente humano vibrará jamais de tanto e tão perfeito amor a Deus, como o de Maria Santíssima. Ao amor do Coração de Maria para com Deus atribui Ricardo de S. Victor ter o Verbo tomado carne em Suas entranhas: quia in Corde ejus amor Spiritus Sancti singulariter ardebat, ideo in carne ejus mi­rabiliter faciebat in tantum quod in ea nasceretur Deus et homo[9].

«Façamos o homem à nossa imagem e semelhança», disse Deus ao criar Adão e Eva[10]. Se algum coração na Terra ou no Céu saiu a imagem e semelhança de Deus, foi o de Maria Virgem. O Coração do Eterno Pai é o amor com que ama a Seu Filho e em Seu Filho nos ama a nós; é à imagem desse Coração-amor que o Divino Espírito Santo formou o de Maria, para que o Verbo Eterno ao encarnar, sentisse logo na Terra, através das palpitações do Coração de Sua Mãe, um amor parecido ao de Seu Pai no Céu e não estranhasse assim tanto os gelos do mundo.

«Eu quero assim considera Sauvé o decreto do Eterno Pai — que sobre todos os homens e sobre todos os Anjos, meu Filho encarnado, encontre numa Mãe que Lhe vou criar, não só morada santíssima, mas a fonte da sua vida humana. O meu amor quere-A tão amante e tão boa, que Sua amizade seja digna do meu Verbo feito homem, para que uni dia, quando ao reclinar-se Ela sobre o presépio, ou sobre o Divino Infante em Nazaré, ou sobre o Corpo exangue do Salvador do mundo, ou ainda sobre a Eucaristia recebida em Seu Coração, seja uma imagem viva das minhas complacências infinitas para com meu Filho querido. Quero, que Ela recompense todo o amor dos Anjos e dos homens, se esse, por impossível, Lhe viesse a faltar; que compense por todos os esquecimentos, todas as indiferenças, todas as ofensas das outras cria­turas»[11].

Em consequência, a Santíssima Trindade destina este Coração da Mãe divina para ser o grande auxiliar do Redentor na obra da salvação do mundo e por isso, ornou-o de todas as perfeições requeridas para tão excelente mis­são. Ninguém será mais esclarecido, mais iluminado e participará mais da Verdade Divina e viverá dela com mais sinceridade, candura e simplicidade. A Beleza de Deus fala-á o enlevo do Céu e da Terra e a Sua beldade tornará sempre mais puro a quem se deixar arrebatar pelos Seus encantos. Será tão bom o seu Coração e tão amante, que a Bondade infinita comprazer-se-á nele melhor e morará nele mais a Seu gosto, que em todos os Anjos e Santos. Será tão generosa que quando a Santi­dade de Deus ofendida exigir uma vítima, prestar-se-á, a uma com Seu Filho adorado, para se imolar e amar[12].

O Coração Imaculado de Maria por sua vez, em qualquer circunstância que o surpreendêssemos, se isso nos fora dado, só veríamos nele uma preocupação: correspon­der com toda a fidelidade e delicadeza de amor, ao amor e às graças que tinha recebido do Senhor, do Pai, de quem desce todo o dom e de quem descia essa caridade que A trazia numa contínua atenção às inspirações e moções do mesmo Divino Amor, para as seguir em tudo; para não buscar outra coisa senão Deus e buscá-Lo em tudo e a querer com toda a perfeição tudo o que Ele queria e exi­gia dela, executando sempre com toda a perfeição tudo o que Lhe dava glória.

«A Santidade, portanto, foi para Maria Santíssima uma questão de Coração», como resume Bainvel[13]. «Que amizade esta a de Maria para com o Eterno Pai! — exclama Sauvé — Só Deus lhe contiecerá os segredos, as efusões, a generosidade, a união! O Pai, deixai-nos participar nas Vossas ternuras, nas Vossas complacências eternas, únicas para com Maria, Vossa Filha! O Maria, Filha de Deus, dai-nos um pouco do Vosso amor, da Vossa confiança, da Vossa generosidade para com o Pai! Vossa proximidade com o Pai é inefável: proximidade de parentesco sublime, proximidade de amor da mais incompreensível amizade! Já que tão perto estais d’Ele, já que Ele nada Vos recusa, pedi-Lhe para nós luz, vida, intimidade divina, sobretudo as virtudes que nos tornem capazes de todas as generosidades filiais para com Ele!»[14]


[1] Sermo IX, De Visitatione.

[2] Specul. B.M.V.X.

[3] Emile Campana — Marie dans le dogme catholique. trad. De A.M.Viel, O.P., tom. 1, pág. 102, Montrèjeau, 1912.

[4] Terrien — La Mère de Dieu, vol. I, L. II, c. II, págs. 189 e ss.

[5] Cf. Ib. Pág. 194.

[6] A. Nicolas, La Vierge Marie dans le Plan Divin, vol. I, pág. 313, ed. 1869.

[7] Cfr. Terreien, obr. cit. Pág. 199.

[8] Bossuet, 3.º Serm. da Naiivid. da Santíssima Virgem, 2.º ponto.

[9] Em S. Thomas opusc. De expositione Salut. Angel.; cfr. Aguilar, ob. cit. pág. 67.

[10] Gen. 1, 26.

[11] Sauvé, Maria Intime, págs. 26-27.

[12] Ib. pág. 35.

[13] Bainvel, Le Saint Coeur da Maria, pág. 41, 1919.

[14] Sauvé, obr. cit., págs. 27-28.