PRO CAUSA DE BEATIFICAÇÃO - PRO CAUSE DE BÉATIFICATION

O que é o Coração de Maria?

 

«Este reflexo teve por fim infundir em nós
um conhecimento e amor especial
ao Coração Imaculado de Maria».
Lúcia

Para ficar bem claro de que é que se trata, quando se diz formalmente: Coração de Maria, urge antes de mais nada explicar bem o significado deste objecto santíssimo. Só assim compreenderemos melhor a sua excelência e valor e vislumbraremos as razões, por que reservou Deus mais expressamente para nossos dias esta devoção e no-la inculca com maravilhas tão grandes como as de Fátima.

Quando a 13 de Junho de 1917, a Virgem prometeu à Lúcia, que nunca a deixaria e que o Seu Imaculado Coração seria o refúgio dela e o caminho que a conduziria a Deus, «abriu as mãos — diz Lúcia — fazendo-nos penetrar no peito o reflexo que delas expedia; parece-me que neste dia este reflexo teve por fim principal infundir em nós um conhecimento e amor especial para com o Coração Imaculado de Maria. Desde esse dia sentimos por Ele no coração um amor mais ardente [1].

Digne-se agora a Virgem, a essa mesma luz benéfica, dar-nos também a conhecer o Seu Coração Imaculado, para mais e mais o amarmos.

Em todos os idiomas goza a palavra oração de muitas e variadas acepções; nem há no corpo humano parte cujo vocábulo se ilumine de mais delicados cambiantes, ao ser expresso na linguagem comum.

Tão depressa o tomamos no sentido próprio, deno­tando o órgão que põe em movimento o sangue e o dis­tribui pelo organismo — é o primum vivens e o ultimum moriens — como logo, em sentido simbólico ou metafórico, designamos o princípio de vida, o amor, o valor, a força, a alma, o conhecimento e sobretudo o que há de mais íntimo e mais nobre na pessoa humana.

Um dos usos mais frequentes é o simbólico, para significar a vida íntima afectiva e moral. O senso comum e a experiência interna, descobrem vaga, mas intuitivamente, sem recorrer a indagações fisio-psicológicas, que existem relações profundas entre o coração e a vida íntima e por isso, emprega o termo coração e o objecto por ele significado, como símbolo natural da vida. Neste caso devemos distinguir bem o símbolo da coisa simbolizada.

Muitas vezes olhamos para o símbolo, mas como que esquecendo-o em si mesmo, visamos directamente a coisa significada: é o sentido metafórico ou figurado, e assim dizemos: S. Francisco Xavier foi um grande coração!

Posto isto, que quererá dizer Coração de Maria? Seu coração de carne? Sua vida intima? Sua pessoa? Ou terá todos estes significados simultaneamente ou alguns deles apenas? Ou uma vez um, outra vez outro?

Em absoluto, segundo a frase, em todos estes sen­tidos se pode empregar. Mas tratando-se do objecto pró­prio da devoção ao Coração de Maria, não é indiferente tomá-lo em qualquer significado. Está hoje bem definido esse complexo harmoniosíssimo.

Não acertava quem julgasse, que neste culto só se atende ao coração de carne de Maria Santíssima; também não atinava quem, prescindindo dele, considerasse apenas como objecto o íntimo de Maria, a Sua vida de amor a Deus e aos homens; nem ainda quem, simplificando, afirmasse, que como em qualquer outra devoção a Nossa Senhora, se trata aqui tão-somente da Pessoa e que o resto pouco importa. Se assim fosse, não se percebe o que nos vinha trazer Fátima.

Assim como quem diz homem, não significa só o corpo humano, nem só a alma, mas uma e outra coisa simultaneamente; atinge corpo e alma, não como um agregado de dois elementos justapostos, mas formando um todo autónomo e subsistente numa pessoa; assim ao falarmos em Coração de Maria, não queremos dizer somente o órgão de carne que pulsava em Seu peito virginal; nem apenas o Seu íntimo, a Sua vida de amor, mas abrangemos uma e outra coisa. Porém não como elementos justapostos, mas formando um todo uno; por isso nem o Coração nem o amor que o informa o separamos da Pessoa, mas conside­ramo-los como o que nela há de mais íntimo e excelente; como o melhor ponto de vista para ser conhecida a Pessoa da Mãe de Deus e dos homens.

Que bem o expressou a Jacinta, quando exclamou: «Gosto tanto do Coração Imaculado de Maria! É o Cora­ção da nossa Mãezinha do Céu! Tu não gostas tanto de dizer muitas vezes: Doce Coração de Maria, Imaculado Coração de Maria? Eu gosto tanto, tanto!»[2]

É isto o objecto da devoção ao Coração de Maria.

Para mais fácil inteligência do assunto, os Autores designam, em linguagem técnica, estes três elementos constitutivos, chamando ao coração de carne, onde vem reflectir-se a vida íntima de Maria, o objecto material inadequado; à Pessoa de quem é o coração e a vida íntima, objecto material adequado e a essa vida íntima ou a essa vida de amor em que a Pessoa se abrasa e lhe faz vibrar o coração, objecto formal.

O Coração físico de Maria (objecto material inade­quado) é como um prisma cristalino, onde convergem os mais delicados raios de luz e calor (objecto formal) da Pessoa de Maria (objecto material adequado). E portanto, o que visamos sobretudo é a Pessoa, mas contemplada através do Coração iluminado e inflamado pelos fulgores que dessa Pessoa irradiam.

 

* * *

                                           

Estas conclusões fluem dos documentos autênticos e do que em presença deles ensinam os Autores prin­cipais que versam o assunto.

Todos à uma, afirmam em primeiro lugar, que o Coração físico faz parte do objecto desta devoção. Não se encon­tra no corpo virginal de Nossa Senhora, — formosíssimo templo do Espírito Santo, Obra-prima do Divino Artista, — parte alguma a que se não deva culto de hiperdulia, pela união em que todo o organismo se encontra com a Pessoa de Maria. Mas o Coração tem sobre os demais Constitutivos do organismo especial a ser venerado expressamente, e em particular, pela significação simbólica e pela parte activa e eficaz que tomou na Obra da Redenção.

Por isso Nilles, sintetizando a Pinamonti, escreveu: «no culto do puríssimo Coração de Maria, além do Seu amor sacratíssimo e de Suas excelências, veneramos tam­bém como objecto sensível o Coração real e isto com todo o direito. Porque, que objecto sensível há aí, entre todas as coisas criadas, mais digno de se propor ao nosso amor, do que o Coração da Divina Mãe, a quem o mesmo Cristo escolheu como alvo de Seu amor e mandou a Santa Brígida, que o venerasse com toda a reverência?»[3]

Na verdade, o Coração físico de Maria Santíssima era o princípio regulador da Sua vida natural; juntamente com o cérebro, é o que há de mais importante no orga­nismo e como que o fundamento de todos os actos da vida, pelas suas funções orgânicas. Logo entre todas as coisas sensíveis, depois do Coração de Jesus, nada há mais exce­lente que o Coração de Maria. Coração da Mãe de Deus, nele se moveu e dele partiu o sangue virginal que no momento mais solene que viram os séculos, foi assumido pelo Verbo Divino, ao encarnar.

Este coração de carne é além disso, depois do de Jesus, o mais belo emblema do amor; emblema e símbolo não escolhido arbitrariamente, como quando por exemplo se representa o amor por uma seta de fogo, mas emblema natural; porque o coração era em Maria o órgão onde vinha reflectir-se toda a Sua vida íntima; que se infla­mava e pulsava mais vivo com os seus afectos puríssimos de amor a Deus, a Seu Filho, às almas; que se dilatava e inebriava com as Suas delícias inefáveis de Mãe, de Filha predilecta e de Esposa singularíssima do Senhor; que se oprimia, se confrangia, dilacerava e suportava agonias piores que a morte, com as dores supremas, junto à Cruz no Calvário.

Que a Pessoa entre como objecto desta devoção, é o que menos se pode pôr em dúvida. O culto dirige-se sem­pre à pessoa: honor adorationis proprie debetur hypostasi — ensina Santo Tomás de Aquino [4].

Os jansenistas caluniaram a piedade cristã e os Autores católicos de não verem na devoção ao Coração de Jesus e de Maria mais do que o coração de carne.

É à pessoa que finalmente se dirige o culto, como quando se beija a mão a alguém, esse acto de respeito não à mão pela mão, mas à pessoa que se tributa.

Basta percorrermos as orações litúrgicas, os hinos e as invocações aprovadas em honra do Coração de Maria, para imediatamente vermos, que é à pessoa de Nossa Senhora que nos dirigimos, através do coração. Recorde-se tão somente esta jaculatória de que a Jacinta gostava tanto: «Doce Coração de Maria, sede a minha salvação»; é por Nossa Senhora que chamamos, mas tocando-Lhe no cora­ção, para mais eficazmente sermos atendidos.

Com que intuição desta verdade falava a mesma Jacinta, quando interrogava a sua prima: «— Ó Lúcia, lembras-te do Coração de Nossa Senhora cercado de espi­nhos a feri-lo?

— É o Coração Imaculado de Maria ultrajado pelos pecados da Humanidade e que deseja reparação.

— Coitadinha de Nossa Senhora!... Eu tenho tanta pena d'Ela!... »[5]

Quanto ao objecto formal, explicam as actas da Sagrada Congregação dos Ritos, no pontificado de Pio IX, que tratando do Santíssimo e Imaculado Coração de Maria, se deve advertir especialmente, que o Seu culto, depois de repetidas e graves discussões havidas sobre este assunto, foi aprovado pela Sé Apostólica, porque por este título Coração, se designa a Sua imensa caridade para com Deus e o Seu efusivo amor aos homens[6].

As razões principais das festas aprovadas pela Igreja, ordinariamente vêm expressas nas lições do segundo nocturno do Ofício dessas festas. Ora no segundo nocturno, tanto do ofício antigo, como do moderno aprovado por Pio XII, vemos que a mente da Igreja ao instituir esta festa, foi principalmente para que se celebrasse solenemente o amor puríssimo da Mãe de Deus, ou para nos servirmos das palavras de S. Bernardino de Sena, «aquele amor divino em que ardia a fornalha do Coração da Virgem: divinus ille amor quo fornaceum Cor Virginis ardens erat.

«Foi deste Coração— continua o Santo — como de fornalha de divino ardor, que a Bem-aventurada Virgem tirou as boas palavras, isto é, as palavras de ardentíssima caridade. Assim como de um vaso cheio de vinho óptimo não pode sair senão óptimo vinho; ou assim como da fornalha de suma ardência não pode irromper senão fervente incêndio, assim do Coração da Mãe de Cristo não podia sair palavra senão de sumo amor e de ardor sumo»[7].

Logo, a devoção ao Coração de Maria é a devoção ao amor que ardeu em Seu Coração para com Deus e para os homens, em todas as suas manifestações. Muito bem resumia quem escreveu, que «todas as prerrogativas depositadas por Deus em Nossa Senhora e todos os tesoiros de excelência conquistados pela Santíssima Virgem, por Sua correspondência às graças e aos desígnios de Deus, tudo isso que constitui Sua grandeza em si mesma, em relação a Deus e em relação às criaturas, tudo reconhece como centro o Seu Coração Imaculado». Pela mesma razão, «o culto do Coração de Maria sintetiza da maneira mais plena e satisfatória, toda a excelsa grandeza de Maria, tanto da Sua Maternidade Divina e privilégios nesta fundados, como de Sua cooperação na obra da redenção das almas»[8].

Eis porque é este o melhor ponto de vista de Nossa Senhora: o Seu Coração Imaculado.

                                           

* * *

 

Nas aparições de Fátima e posteriormente à Irmã Lúcia, por mais de uma vez, o Coração de Maria se mostrou rodeado de espinhos. Também em Paray-le-Monial a Santa Margarida Maria se revelou o Sagrado Coração de Jesus todo em chamas, mas cingido de espinhos, para significar «um Coração que tanto tem amado os homens» — são as chamas — «e que não recebe da maior parte senão injúrias e ingratidões» — são os espinhos.

Como não há coração nenhum mais parecido com o de Jesus em amor aos homens que o de Maria; assim também não há nenhum que mais se Lhe assemelhe em participar das injúrias feitas a Seu Filho e a Ela mesma do que o Seu Imaculado Coração. Por esta razão se mostrou pungido de espinhos: «tem pena do Coração de tua Santíssima Mãe que está coberto de espinhos que os homens ingratos a todos os momentos Lhe cravam, sem haver quem faça um acto de reparação para os tirar» — dizia o Menino Jesus à Irmã Lúcia, na visão de 10-12-1925, em que lhe apareceu a Santíssima Virgem e ao lado, suspenso numa nuvem luminosa, o Menino Jesus; a Mãe do Céu pôs-lhe a mão no ombro e ao mesmo tempo mostrava-lhe na outra um Coração cercado de espinhos: — «Olha, minha filha, o meu Coração cercado de espinhos que os homens a todos os momentos Me cravam com blasfémias e ingratidões. Tu ao menos vê se Me consolas e diz que pro­meto assistir na hora da morte com as graças necessárias para a salvação a todos os que no primeiro sábado de cinco meses seguidos, se confessarem, receberem a Sagrada Comunhão, rezarem um Terço e Me fizerem quinze minutos de companhia, meditando nos quinze mistérios do Rosário, com o fim de Me desagravarem».

Não podemos portanto, abstrair deste elemento, os espinhos, ao estudar o objecto da devoção ao Imaculado Coração de Maria, se queremos acomodar-nos às intenções de Deus, ao revelar-nos com este pormenor o Coração de Maria: hemos de ver nesse Coração não só o imenso amor de Maria Santíssima a Deus e aos homens, mas ao mesmo tempo contemplá-lo pungido pelas ingratidões dos homens para com Seu Filho e para com Ela mesma.

A liturgia confirma isto mesmo. Na nova Missa aprovada para a festa do Imaculado Coração de Maria, se por um lado a Epístola nos fala da excelência, dignidade, virtudes, bondades, poder, missão do Coração de Maria; por outro lado, no Evangelho, mostra-no-lo alanceado, de pé, junto à Cruz de Seu Filho agonizante, a quem Jesus nos entrega como filhos e no-la dá por Mãe: são os espinhos. Poema de amor e de dor por nós e para nós, pecadores! Por isso o Intróito da Missa nos convida com palavras do Apóstolo: «vamos pois, com confiança até junto deste trono de graça e de misericórdia para alcançarmos auxílio em tempo oportuno [9].


[1] JACINTA, pág. 111-112.

[2] JACINTA, pág. 112.

[3] Nilles, De Rationibus Festorum Sacratissimi Cordis Jesu, I, pág. 549, ed. V.; cfr. também: O Sagrado Coração de Maria, pelo P. João Pinamonti, S.J., trad. port. S. Paulo, 1904, na introd., págs. 8 e segs.

[4] S. T. III, q. 25, a. 2.

[5] Cfr. Era Uma Senhora Mais Brilhante que o Sol, pág. 100.

[6] Nilles, Obr. cit. 1, pág. 568.

[7] II Lect. do II Noct. do oficio da festa.

[8] P. João de Castro Engler, C. M. F. em Revista Eclesiástica Brasileira, Vol. IV, 1944, pág. 32, artigo «O Coração de Maria na Teologia Mariana».

[9] Hebr. IV, 6.