O Coração Imaculado
de Maria
á luz de Fátima
PRIMEIRA
PARTE
Fundamentos da Devoção ao Imaculado Coração de Maria
Alvores
da Devoção ao Imaculado Coração de Maria
«Jesus quer estabelecer no
mundo
a Devoção ao Meu Imaculado Coração»
(Nossa Senhora à Lúcia).
Será
recente na Igreja a devoção ao Imaculado Coração de Maria?
Se
ao dizermos «Coração de Maria», queremos significar o Seu Coração
invisível, isto é, a Sua vida íntima de amor a Deus e
aos homens,
esse objecto delicadíssimo remonta ao começo do Cristianismo.
Duas vezes
alude S. Lucas no Evangelho ao Coração de Maria; a primeira no versículo
19 do primeiro capítulo. Relatando as maravilhas que os Pastores
contavam do Menino Jesus, acrescenta: «Maria autem conservabat omnia
verba haec conferens in corde suo. Maria conservava todas estas
palavras conferindo-as em Seu Coração». A segunda no mesmo capítulo,
versículo 51, após a resposta que Jesus deu a Sua Mãe, quando O
encontrou no Templo: «et Mater ejus conservabat omnia verba haec in
corde suo: e Sua Mãe conservava todas estas palavras em Seu
Coração».
A
Igreja em sua liturgia, os Doutores e Autores eclesiásticos vão haurir
ainda mais longe as alusões ao Coração da Mãe de Deus, quando Lhe
aplicam as palavras dos Cantares: «Ego dormio et Cor meum vigilat:
eu durmo e o meu Coração vigia»:
é o Espírito Santo a revelar-nos a viva chama de caridade na Sua Esposa,
que nem velando nem dormindo deixa um instante de crepitar. «Pone me
ut signaculum super Cor tuum: imprime-Me como um sinal indelével
sobre o teu Coração»:
é o mesmo Espírito Santo a convidar a Esposa a que O leve impresso em
seu Coração.
Entre
os Santos Padres, Doutores da Igreja e Teólogos farta colheita de
alusões ao Coração Imaculado de Maria se encontra, desde os primeiros
séculos, ao referirem-se à Sua vida íntima de amor e às Suas virtudes:
entre outros, S. Ambrósio, Santo Agostinho, S. Leão Magno, S. João
Damasceno, S. Gregório Taumaturgo, S. Efrém; três vezes fala este último
do Coração de Maria transverberado pela espada de Simeão
.
A S. Jerónimo se atribuem estas palavras: «quot laesiones in corpore
Filii, tot vulnera in corde Matris: quantas feridas no corpo do
Filho, tantas chagas no coração da Mãe». E Santo Agostinho: «Materna
propinquitas nihil Mariae profecisset, nisi felicius Chiristum Corde
quam carne gestasset: a relação de maternidade nada aproveitaria a
Maria, se não trouxera em Seu Coração a Cristo de modo mais ditoso que
em Sua carne».
Até
ao século XII não encontramos documentos comprovativos de culto
explícito ao Coração de Maria; mas a partir desta época, avultam cada
vez mais as provas desse culto, embora exercido apenas por almas de
eleição na sua devoção particular. Paulo Warnefrido invoca deste modo ao
Coração de Maria: «Abri, Mãe de Misericórdia, abri as portas de Vosso
benigníssimo Coração aos suspiros e preces dos pobres filhos de Adão.
Na
Meditação da Salve, a que já nos referimos, lemos:
«…
Peço-te esse Coração, sorris-me e imediatamente descanso, adormecido em
Tua doçura. Abraças-me, ó Dulcíssima, e logo me inebria o Teu amor;
então não se aparte o meu coração do Teu; nem sei pedir outra coisa
senão o Teu Coração. Governa com o Teu Coração o meu coração e coloca-o
na Chaga do Lado de Teu Filho»
.
O
Doutor Seráfico, S. Boaventura, escreve assim deste Horto cerrado: «O
puríssimo Coração de Maria foi o Horto e Paraíso do Espírito Santo,
jardim de delícias em que viceja toda a sorte de flores e se aspira toda
a fragrância das virtudes... Ó Coração de amor, porque te converteste em
esfera de dor? Contemplo, Senhora, o Teu Coração e nele vejo, não o
coração mas a mirra, o absinto e o fel! Ó vulnerada Senhora, fere também
os nossos corações! Porque não possuo ao menos o Teu Coração, para que,
aonde quer que eu vá, Te veja sempre crucificada com Teu Filho!»
Com
ternura parecida falavam do Coração de Maria, Santo Anselmo, S. Lourenço
Justiniano, Santo Alberto Magno. Saboreiem os leitores esta formosa
descrição do Coração de Nossa Senhora, deixada por este doutor da
Igreja: «Coração disposto pela prontidão, singelo pela simplicidade, de
cera pela brandura no trato, flexível pela docilidade, imaculado, porque
sem sombra de culpa, puro, porque sem mancha, recto pela pureza de
intenção, de carne pela ternura, grande por desprezar as grandezas,
sublime por suspirar pelas coisas celestes, dilatado porque a todos ama,
superabundante pelo muito que experimentou, sábio em providência,
estável na perseverança, íntegro em fugir de cuidados vãos, óptimo em
eleger o melhor, perfeito na inteira adesão a Deus».
Ricardo de
S. Victor expressou-se assim: «Seraphim e coelo descendere poterant
ut amare discerent in Corde Mariae: os Serafins podiam descer do Céu
para aprenderem a amar no Coração de Maria»; e acrescenta: «Cor quod
levi orationcula, dummodo sit devota, flectitur ad pietatem: Coração
que com uma leve oraçãozinha, com tanto que seja devota, logo se move à
compaixão».
Em S.
Bernardino de Sena muitos textos expandem o seu afecto ao Coração da Mãe
de Deus: aos escritos deste Santo foi colher a liturgia as duas
primeiras lições do segundo nocturno da Festa do Imaculado Coração de
Maria.
Gerson, S. Lourenço Justiniano, S. Filipe de Neri, S. Francisco de
Sales, S. Leonardo de Porto Maurício, o B. Henrique Suso e outros muitos
fornecem-nos testemunhos fervorosos e abundantes de que nenhum momento
da sua história deixou a Igreja de penetrar nesse santuário da vida
intima de Maria Santíssima, como quem se acolhe a refúgio seguro e
remansoso
.
Grande
influência tiveram desde a segunda metade do século XIII, para infiltrar
nos corações o culto privado do Coração de Maria, Santa Matilde, Santa
Gertrudes e Santa Brígida, como nota Nilles e com ele Gallifet, Aguilar
e Nix.
Santa
Matilde no seu Liber Specialis revela-nos como Jesus lhe ensinou
a venerar o Coração de sua Mãe na superabundância dos admiráveis dons
neles contidos
.
Em Santa Gertrudes é conhecida a visão que teve na festa da
Anunciação, enquanto no invitatório do ofício divino cantavam a Ave
Maria. Do seio do Eterno Pai, do Filho e do Espírito Santo desciam três
torrentes sobre o Coração de Maria que logo regressavam ao ponto de
partida. Compreendeu a Santa o poder, a sabedoria e a bondade que toda a
Santíssima Trindade comunicava a Maria Santíssima
.
A Santa Brígida manifestou Nosso Senhor que os Corações de Jesus e de
Maria eram um só.
S.
João Eudes na sua obra «Le Coeur Admirable de la Très Sacrée Mère de
Dieu» tributa o encómio de apóstolos do Coração de Maria a doze
nomes, todos da Companhia de Jesus, pelo muito que contribuíram com
seus escritos para pouco a pouco se tornar conhecido e amado este
Coração admirável. São eles: o P. Francisco Suarez, o P. João Osório, S.
Pedro Canísio, o P. Sebastião Barradas, o P. João Nieremberg, o P. João
Baptista Saint-Jure, o P. Estêvão Binet, o P. Francisco Poiré, o P.
Paulo Barry, o P. Cristóvão de Vega, o P. Honorato Niquet e o P.
Cornélio Alápide. «Eis aqui — diz o Santo — os doze Apóstolos do
Santíssimo Coração da Mãe de Deus... Se agora me perguntais onde
aprenderam tão salutar ciência e em que fonte beberam tão
extraordinários sentimentos de respeito, piedade para com este Sagrado
Coração, responderei que no Coração piedosíssimo de seu glorioso Pai
Santo Inácio; o qual tão cheio estava deles que levava continuamente
sobre o seu coração a imagem do Coração Divino da Mãe do Salvador»
.
A estes
autores citados por S. João Eudes outros nomes incontestavelmente se
poderiam acrescentar, da Companhia de Jesus e de fora dela, pelo saber e
ternura com que falaram ou escreveram das glórias íntimas da filha do
Rei; por exemplo o P. Luís da Palma, na Historia de la Sagrada Pasión,
descreve maravilhosamente as dores do Coração de Maria. Na nossa
literatura temos evidentemente um notável apóstolo do Coração de nossa
Mãe do Céu no piedosíssimo Frei Tomé de Jesus. A melhor prova são estas
palavras com que ele dedica os seus Trabalhos de Jesus à Rainha
do Céu e da Terra: «A Vós e a Vosso grande Nome, ó Soberana Rainha, se
consagra esta Obra que contém os trabalhos de Vosso Filho, com uma
firme confiança que a recebereis com toda a aceitação pelo que têm
de trabalhos e pelo que tem de Vossos. Em outro melhor livro que foi o
de Vosso Coração se viram estampados os que agora nestes se Vos
oferecem estritos. Lá tiveram a grandeza de serem impressos pelo Vosso
amor; aqui a honra de serem consagrados a Vosso Nome; com que fica esta
honra sendo igual àquela grandeza. E suposto que no Vosso Coração se viu
a primeira estampa destes Trabalhos e neste Livro por este
respeito, se vê um tão fiel retrato do Vosso Coração..., aqui
tendes pois, Virgem Santíssima, aqueles Trabalhos que são Vossos por
tantos títulos, que roubo fora grande que Vos fizera a nossa ingratidão,
se os não dedicara à Vossa grandeza, sendo Vós do Senhor que os padeceu
verdadeira Mãe e dos Trabalhos padecidos fidelíssima Companheira. Não se
Vos pede Senhora que ponhais os olhos neste Livro, porque claro está,
para aí hão de ir os olhos donde está o Coração...»
Já
antes deste venerável Autor, outro também venerável e taumaturgo, o P.
Anchieta no Brasil, escrevia tais coisas no seu Poema «De Beata
Virgine» que o P. Fr. Cruz Ugalde não hesita chamar a essa passagem
«o primeiro Cântico do Coração de Maria nas Américas».
Lembremos
ainda outro ardente apóstolo do Coração de Maria na pessoa do carmelita
calçado Frei Miguel de Santo Agostinho: no seu precioso Tratado «De vita
Mariae formi» que outra Coisa faz senão ensinar-nos a viver no Coração
de Maria e conforme ao Coração de Maria?
Migne, vol. 95, col. 1515; cit. num belo «esboço histórico da
Devoção ao Coração de Maria», no Mens. de Maria, Abril de
1946 pág. 107, por M. Simões.
Para estas e outras passagens ver Agui1ar. obra cit.,
cap. IV
Les
Révélations de Sainte Mathilde,
Paris, 1862, págs. 10-11.
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