Neste
abandono em que se encontrava a Alexandrina, quis a Providência, como
outrora a Cristo no Horto, enviar-lhe um anjo a confortá-la.
Encontrando-se em Junho de 1944, em pregação perto de Balasar, o R.
Padre Humberto Pasquale, salesiano, alguém lhe pediu que fosse por
caridade a levar algum conforto à Doentinha de Balasar, que estava muito
abandonada em grandes tribulações.
Se se
deixasse levar pelas vozes que em contrário ouvira nesses dias, não
teria cedido; mas foi precisamente aquela discordância de pareceres
expressos e preparados com tão pouco escrúpulo que lhe despertou o
desejo de indagar a verdade.
E lá foi,
levado em automóvel pelo Médico Assistente da Alexandrina, o Dr.
Azevedo. Outra vez voltou a visitá-la, a 14 de Julho do mesmo ano, mas
agora por motivo superior: "por um sentimento de bem-estar que se
experimenta ao pé dela" — escreveu ele e acrescenta: "tenho ouvido da
boca de outros a mesma coisa: naquele quarto a gente sente-se bem, como
envolvido numa atmosfera especial: é o bonum est nos hic esse de
S. Pedro com Jesus." (carta de 27.7.44)
Desde a
primeira visita que a Alexandrina sentiu, na pessoa daquele filho de S.
João Bosco, como que o anjo confortador que vinha incutir-lhe coragem
para continuar a subir o seu calvário tão duro. E facilmente começou a
abrir-lhe a alma, ao contrário do que acontecia com outros Sacerdotes
que a visitavam, a tal ponto que, desde Setembro, o considerou como o
segundo director que o Senhor lhe enviou.
Não foi
sem hesitação que o R. Padre Humberto aceitou a delicada incumbência de
dirigir a Alexandrina, sentindo interiormente o peso daquela
responsabilidade; nem o fez sem consultar primeiro a quem desde 1933 até
1942 a dirigira. Como ele mesmo escreveu na preciosa biografia da
Alexandrina que publicou em Itália em 1957, a pág. 201:
Naquele brevíssimo encontro, o único e primeiro director
da Alexandrina não só confirmou o Salesiano na delicada
empresa, mas com uma sensação de alívio lhe disse:
— É sua; confio-lha plenamente. O Senhor lhe concederá
luz para a guiar.
Temos de
facto, de confessar que foi para nós, seu primeiro director espiritual,
um alívio, ao vermos como a Providência supria tão competentemente, na
pessoa do R. Padre Humberto Pasquale — Mestre de noviços em Mogofores,
pregador e escritor — a falta que em circunstâncias tão acres e difíceis
fazia à Doente uma direcção assídua e esclarecida.
Meteu
pois generosamente ombros à empresa. Para logo, mandou à Alexandrina que
semana por semana, lhe mandasse por escrito, ao menos resumidamente o
que se ia passando. Apesar da repugnância e dificuldade que neste
período, mais que nunca, sentia em ditar o que se passava em sua alma,
obedeceu àquela ordem como se de Deus emanada. E assim se foram juntando,
ano por ano, centenas de páginas, logo dactilografadas em Mogofores,
pelos Salesianos, que são mais uma mina preciosa a mostrar bem claro a
elevação daquela alma de eleição e a melhor resposta às incompreensões,
aos dictérios, às calúnias com que em vão tentaram deitar por terra a
obra que Deus vinha realizando na alma da Alexandrina. (ib. p. 201)
O novo
timoneiro tomou com toda a responsabilidade e consciência o leme dessa
atribulada barquinha, que parecia neste momento vagar no mar alto,
entregue a todos os ventos e tempestades, sem uma estrela a luzir no
firmamento que lhe orientasse a rota difícil.
Tão bem
compreendida e guiada se sentia a Alexandrina que lhe abria de par em
par a consciência, tal qual ao primeiro director. Por isso, há de ela
escrever-lhe, quando ele estiver em vésperas de partir para Itália:
30.8.1948
Meu bom Padre: desde criança sempre gostei de nunca
faltar ao que prometia, mesmo nas mais pequeninas coisas.
E ainda hoje quero continuar na mesma forma, mas já não
é com aquela prontidão de outrora, porque as minhas
forças não me permitem, o que é por vezes de grande
sofrimento para mim. Mas como não estou no mundo para
fazer a minha vontade mas sim a de meu Jesus, cá estou a
fazer o que há um ano prometi. Perdoe-me a falta que foi
inteiramente involuntária.
É com certeza a última carta que escrevo por minha mão a
vossa Rev.cia: seja em tudo feita a vontade de Deus: que
ela se cumpra em mim sempre e em tudo.
Depois de pedir luz e forças ao Céu, quero dizer ao meu
bom Padre que esta minha carta tem o fim de felicitar e
saudar aquele que tanto por mim tem feito nas horas
trágicas da minha vida, o que jamais esquecerei. E
depois de o felicitar de alma e coração, prometo no dia
um de Setembro, aniversário de V. Rev.cia, comungar,
sofrer e orar, para que Jesus com sua bendita Mãe lhe
dêem as suas melhores bênçãos e graças e o façam cada
vez mais santo e mais cheio de amor pelas almas.
Meu bom Padre, quando penso na minha vida, no meu
calvário, no abandono em que estou e se sim ou não Nosso
Senhor me quererá só, mesmo só, sem ter junto de mim um
Sacerdote que me compreenda, o meu coração cobre-se de
toda a escuridão e fico como que sem nenhuma esperança:
a custo encubro as lágrimas e por vezes nem sou capaz de
as esconder.
Mas isto não quer dizer que não aceito com alegria da
alma, mais este golpe, o segundo golpe espiritual, se
Jesus com ele me quiser ferir. Pode acreditar, meu
Padre: seja esta carta como que meu testamento, que é
depois do meu Paizinho (o primeiro director), outro
segundo Paizinho a ocupar lugar no meu coração. São os
dois Padres por quem eu mais oro, que mais união têm na
minha alma e que melhor me compreendem.
Ai, meu Padre, eu não sou digna de ter a amparar a minha
alma Sacerdotes tão sábios e tão santos. Será por isso
que Jesus deixa que os homens os retirem lá para longe?
Pobre de mim: eu não sou nada! Eu não sou o que devia
ser; sou pior que o nada, vou muito além do nada: muito
mais além! Eu gostava, meu bom Padre, de saber dizer o
que sinto, todo o horror que isto me causa e como me
sinto indigna de tudo e de todos; mas não sei nem
poderei jamais saber.
Adeus; nunca esquecerei o grande bem, o grande amparo
que tem dado à minha alma. Lembro-o na Terra e
lembrá-lo-ei no Céu.
Muito obrigada.
Na
verdade, só durante três anos e tanto tratou o Padre Humberto
pessoalmente com a Alexandrina. E esse período não deixou de ser
atribulado para ele e para a dirigida.
Mal
começou a ir a Balasar, logo houve quem quis ver nessas visitas
transgressão às ordens emanadas da Autoridade eclesiástica. Dizia-se que
o Salesiano andava a fazer-se director da Doente, metendo assim a fouce
em seara alheia. A documentação que temos diante deixa entrever qualquer
coisa parecida a intriga.
Fosse
como fosse, o certo é que, passados poucos meses, o P. Humberto recebe
ordem de não se meter no caso de Balasar: foi-lhe comunicada pelo seu
Inspector, que a tinha recebido do Sr. Arcebispo Primaz.
Apresentando-se ele (o Padre Humberto) como director
espiritual da Doente, concorre — dizia a ordem — para
perturbar algumas pessoas mais sensíveis que a rodeiam.
(ob. cit. p. 167-168)
Esteve
por isso, algum tempo sem escrever nem visitar a Doente.
Mas logo que se fez luz sobre aquela urdidura, a
autoridade competente atenuou a proibição e ficou a
escrever-lhe e a visitá-la uma vez por mês. (ib.)
E
seguiram-se da parte do Padre Humberto quase quatro anos de estudo a
sério daquela alma de escol, não só para a poder dirigir com todo o
acerto, mas para logo após a morte dela, a dar a conhecer ao mundo, como
o prova a esplêndida biografia que dela publicou em Itália, em 1957.
O ter
tomado a direcção do Padre Humberto Pasquale deu ensejo à Alexandrina de
se ligar espiritualmente à Congregação Salesiana. Já no ano de 1944,
recebia o diploma de Cooperadora Salesiana que lhe foi dado para poder
gozar de todas as indulgências anexas e com a sua oração colaborar, em
união com os Salesianos, na salvação das almas, sobretudo dos jovens e a
fim de orar e sofrer pela santificação dos Cooperadores de todo o mundo.
(ib. 310)
Meu Deus, já não estou sozinha! - exclama ela
confortada.
Não
estava de facto, e os Salesianos de Mogofores principiaram a mostrar de
vários e delicados modos quanto a consideravam da Família de Dom Bosco,
tanto os Padres como os Noviços. Dir-se-ia que principiaram a
corresponder-se como irmãos da grande Família Salesiana.
Por
gentileza do Padre Humberto, possuímos a fotocópia de dois autógrafos
dela, datados no dia do seu aniversário, um para os Padres outro para os
Noviços. Transcrevemo-los:
Só Deus é grande!
Balasar, 30.10.1944.
Exmos. e Revmos. Senhores Padres.
Para todos o amor mais abrasador de Jesus e da Mãezinha
e todas as riquezas do Céu. Tenho presente todas as
intenções que me recomendaram e faço-os participar das
minhas pobres orações e sofrimentos. É um dever de
gratidão da minha parte: não faço nada demais. Sinto-me
tão feliz e tão rica com o apoio que tenho em Vossas
Reverências!
Ó meu Deus! Já não estou sozinha: tenho quem me ajuda a
subir o meu tão penoso calvário. De todo o meu coração e
de toda a minha alma digo: Jesus e a querida Mãezinha
lhes paguem tudo e lhes dêem todas as riquezas do Céu:
riquezas de virtudes, de graças, para com elas atraírem
para o Coração divino de Jesus as almas.
Não posso mais. Sempre unidinhos na Terra e no Céu. A
bênção e o perdão para esta que implora orações e muitas
orações, a pobre Alexandrina.
A carta
para os Noviços é como segue:
Meus queridos Noviços e Salesianos dessa Santa Casa.
Queria escrever a cada um de vós, mas não posso: faltam-me
as forças. Como tenho um dever a cumprir de vos
agradecer as santas orações que tendes feito por mim,
faço-o a todos em geral. Jesus e a Mãezinha vos paguem
tanta caridade. Só desejo que ocupeis no Coração divino
de Jesus o lugar que ocupais no meu, porque assim tudo
podeis receber. Jesus é tão rico!... E eu tenho-vos a
todos tão dentro do meu coração! É por isso, que vos
quero assim nos de Jesus e da Mãezinha.
Um muito obrigada a todos os que me escreveram. Podeis
confiar que Jesus vos concederá tudo quanto desejais,
para vossa santificação e salvação das almas. Confiai,
confiai:
Jesus será sempre convosco. Contai sempre comigo aqui na
Terra e depois no Céu, onde vos espero.
Por caridade orai por mim.
Sou a pobre Alexandrina Maria da Costa.
Mas de
novo vinha Jesus mostrar-lhe o que já há tantos anos lhe tinha afirmado:
"Ele é que era o seu director de perto, contínuo", os outros que lhe
dava na Terra, sê-lo-iam de longe. No êxtase após a primeira Crucifixão
ouvia ela de Jesus que "Ele é que tinha sido seu Mestre a ensiná-la
desde pequenina."
Por isso,
não nos espanta que o R. Padre Humberto, em fins de 1948, fosse chamado
pelos seus Superiores para a sua pátria, para a Itália.
No
Brasil, onde nos encontrávamos desde princípios de 1946, recebíamos nas
vésperas da sua despedida de Portugal a seguinte carta:
Porto, 9.6.48.
R. Padre Mariano Pinho.
Há quanto tempo devia ter escrito. Perdoe-me tanto
silêncio. O tempo não chega para nada. A falta de
notícias deve ser para V. Rev.cia um sacrifício, mas
também para nós não há mimos, graças a Deus. Estamos
perto, mas não tanto como se julga. Os afazeres e as
contrariedades nos acompanham sempre.
Te Deum laudamus! No sofrimento sim, oh, nele
estamos juntos à vítima do Calvário; no sofrimento e na
convicção cada vez mais profunda de que digitus Dei
est hic.
A vida mística vivida cada vez mais intensamente, os
escritos sempre teologicamente correctíssimos, a
perfeição num aumento sensível e admirável, em todas as
virtudes especialmente na humildade: eis em resumo o que
continua a ser a Alexandrina.
Continua o jejum (começado em Março de 1942), continua o
sofrimento da Paixão íntima sofrida por Jesus e descrita
com uma visão psicológica das coisas, dos sentimentos do
Salvador que não deixa dúvidas sobre sua veracidade e
manifesta uma tal interioridade da alma vítima, que
impressiona.
O que Nosso Senhor lhe tem pedido e o que ela lhe tem
dado dão uma ideia da missão verdadeiramente grande de
que está encarregada. O mundo com as suas maldades, com
os seus diferentes crimes está nela representado ao
vivo, como se ela tivesse a experiência de todo esse
conjunto de mal que horroriza quem bem o conhece. E ao
lado disso, que heroísmo de reparações!
Os colóquios são muito mais raros, mais breves e
dolorosos. Há mais de um ano, o que acho de mais notável
é a transfusão do sangue de Jesus para ela. Fala na
gotinha de sangue injectada no seu coração por um tubo
dourado, em comunicação com o Coração de Jesus.
Na sexta-feira Santa recebeu misteriosamente a
Comunhão com estas palavras: Viaticum Corporis Domini
Nostri Jesu Christi etc.
Um dia um Anjo dá-lhe a comunhão e diz: Corpus Domini
Nostri Jesu Christi etc. Outra vez é Jesus que lha
dá e diz: Corpus Domini Jesu Christi etc.
Pequenas coisas que, por ela não entender a língua,
dizem muito.
O demónio, com assaltos sem a tocar, tem-na perseguido
muito, deixando-lhe a sensação de consentir em baixezas
sem nome. Há pouco tem-se feito ouvir com pancadas
fortes no soalho da casa. Nada porém tira ao ambiente e
a ela a paz e a serenidade mais invejável.
É esta, em resumo, a vida da vítima do Calvário (não
esquecer que o lugar onde morava a Alexandrina se chama
Calvário): um mistério de sobrenatural, de heroísmos que
se desenrola na forma mais simples e sob o sorriso
enganador que cativa as almas, as muitas almas que a
visitam... Nas mil vicissitudes, vejo-a guiada pelas
luzes do alto e cheia de uma sabedoria prudente que não
encontrei ainda em ninguém.
Quantas coisas queria dizer mais a V. R., mas tenho que
fechar a carta já interrompida umas poucas de vezes.
Queira lembrar-se de mim: bem sabe que não é esquecido
nunca entre nós. Oxalá que os planos de Deus se realizem
quanto antes, para o bem das almas.
Abraça-o com amizade nos corações de Jesus e Maria.
P. Humberto Pasquale, Salesiano.
Além da
actuação destes dois directores espirituais, ocupou lugar especial de
bom conselheiro e confessor habitual da Alexandrina o R. Padre Alberto
Gomes, pároco de Travassos, por quem a Doente de Balasar tinha a
veneração e respeito que se tem aos santos, como ela em várias cartas o
expressou.
Logo que
por ordem dos Superiores nos vimos afastados de Balasar, nós mesmo
pedimos ao R. Padre Alberto Gomes se dignasse, sempre que pudesse,
passar por Balasar, para confessar a Alexandrina e confortá-la no seu
martírio. O Padre "Albertinho", com toda a sua caridade e zelo
característico, começou a visitar a Doentinha duas vezes por mês. Numa
carta que nos escreveu Sua Rev.cia, a 29.2.49, encontramos esta passagem:
A Alexandrina continua no seu glorioso posto, sempre
sofrendo mas sempre sorrindo e consolando outros que
sofrem e não sorriem.
Eu, na falta de director idóneo, continuo a absolvê-la
regularmente duas vezes por mês.
E depois
da morte dela, lemos noutra sua carta estas linhas:
Até ao último dia, nunca eu fui infiel à delegação de V.
Rev.cia, nem ela foi ingrata à minha dedicação. O que
desejo é que ela, no Céu, conheça à evidência a intenção
pura dos meus trabalhos e despesas. Sei que conhece e
até sinto o seu conhecimento, desde que compareceu
diante do Eterno Esposo.
Terminou pois a minha actuação no desempenho da pesada
missão que V. Rev.cia me confiou, quando me apresentou
Alexandrina com o cartão que de Braga a ela enviou por
mim, no dia 20.1.1942. Nunca mais esqueço a V. R....
Muito dedicado em Jesus Cristo.
P. Alberto Gomes