PRO CAUSA DE BEATIFICAÇÃO - PRO CAUSE DE BÉATIFICATION

TEXTOS MÍSTICOS TRADUZIDOS

 

O Padre Mariano Pinho tomou muito a séria a direcção da Beata Alexandrina e de outras almas que se lhe confiaram. Por isso dedicou-se afincadamente ao estudo da mística. No Mensageiro de Maria publicou em tradução sua alguns poemas de S. João da Cruz.

 

CÂNTICO ESPIRITUAL

S. João da Cruz, 1584

 

Canções que tratam do exercício de amor entre a alma e o Esposo Cristo em que se tocam e declaram alguns pontos e efeitos da oração.[1]

 

Esposa

 

Onde é que tu, meu Amado,
Te escondeste deixando-me em gemido?
Fugiste como o veado,
Havendo-me ferido;
Chamando eu fui por ti: tinhas partido!

 

Pastores que passardes
Lá por ventura nos redis do morro,
Se ao meu Amado achardes,
Que venha em meu socorro.
Dizei-lhe que adoeço, peno e morro.

 

Buscando meus amores
Irei por esses montes e ribeiras,
Nem colherei as flores;
Mesmo as feras arteiras
Não temerei, nem fortes nem fronteiras.

 

Pergunta às criaturas

 

Ó bosques e espessuras
Plantados pela mão do meu Amado,
Ó prado de verduras,
De flores esmaltado,
Dizei-me se por vós terá passado?

 

Resposta das criaturas

 

Mil graças derramando
Correu por estes soutos com ternura
E enquanto o sai olhando, só com sua figura
Vestidos os deixou de formosura.

 

Esposa

 

Ah, quem poderá sarar-me?
Acaba de entregar-te sem rodeio;
Não queiras enviar-me
Mensageiro entremeio,
Que não sabe dizer-me o que eu anseio.

 

E todos quantos vagam
De Ti me vão mil graças relatando,
Mas todos mais me chagam
E mais me vai matando
Um não sei quê que ficam balbuciando.

 

Mas como perseveras,
Ó vida, não vivendo aonde deves,
Matando-te deveras
As setas que recebes
Daquilo que do meu Amado em ti concebes?

 

Porquê, tendo chagado
Meu pobre coração, não o saraste?
Depois de o ter roubado,
Porque assim o deixaste
E não tomas o roubo que roubaste?

 

Desfaz estes abrolhos,
Ninguém mais é capaz de os desfazer;
E vejam-Te meus olhos,
Que és seu lume e prazer
E para ti somente os quero ter.

 

Mostra tua presença,
Mate-me a tua vista e formosura;
Olha que esta doença
De amor, já não se cura,
Senão com a presença e co’a figura.

 

Ó fonte transparente,
Se nesses teus semblantes prateados,
Formasses de repente
Os olhos desejados
Que trago dentro da alma desenhados!...

 

Afasta-os, Amado,
Que vou de um voo!...

 

Esposo

 

Pomba, o voo doma,
Que o cervo vulnerado
Por sobre o outeiro assoma
E ao ar deste teu voo o fresco toma.

 

Esposa

 

Meu amado, as montanhas,
Os vales solitários, nemorosos,
As ínsulas estranhas,
Os rios rumorosos,
O sibilo dos ares amorosos,

 

A noite sossegada
Emparelhando com o surgir da aurora,
A música calada,
A solidão sonora,
A ceia que recreia e enamora…

 

Caçai-nos as raposas,
Que a nossa vinha já se encontra em flor,
E tantas são as rosas
Que em pinha as vamos pôr;
No céu ninguém surja, por favor.

 

Detém-te, bóreas morto,
Vem, austro, que recordas os amores,
Aspira por meu horto
E corram teus olores
E o Amado pascerá por entre as flores.

 

Ó ninfas da Judeia,
Enquanto nos rosais e dentre as flores
O âmbar nos recreia,
Ficai nos arredores
Nem toqueis na soleira com rumores.

 

Esconde-te, Qu’ridinho,
E volta a tua face p’ràs montanhas;
Nem o digas baixinho,

Mas olha p’ràs campanhas
Da que trilha por ínsulas estranhas.

 

A vós, aves ligeiras,
Leões, cervos e gamos saltadores,
Montes, vales, ribeiras,

 

Águas, ares, ardores,
E vós, medos nocturnos veladores,

 

Pelas amenas liras
E canto de sereias vos conjuro
Que cessem vossas iras
E não toqueis no muro,
Para que a Esposa durma mais seguro.

 

E já entrou a Esposa
P’ra dentro do ameno horto desejado
E a seu sabor repousa
O colo reclinado
Sobre os braços dulcíssimos do Amado.

 

Sob a árvore de Adão,
Ali comigo foste desposada;
Ali te dei a mão
E foste reparada
Onde foi tua mãe Eva violada.

 

Nosso leito florido
De covas de leões entrelaçado,
Em púrpura estendido,
De paz edificado,
De mil escudos de oiro coroado…

 

Após tuas pegadas
As donzelas discorrem no caminho;
Com toques inflamadas
E generoso vinho,
Dão-te emissões de bálsamo divino.

 

Bebi do meu Amado
Na adega interior; quando saía
Por todo aquele prado
Já nada conhecia
E o rebanho deixei que ante seguia.

 

Ali me deu seu peito
E me ensinou ciência saborosa,
E dom lhe fiz, de feito,
De mim sem deixar cousa,
Ali lhe prometi ser sua esposa.

 

De alma me consagrei
Ao seu serviço e todo o meu haver,
Já não conservo a grei
Nem tenho outro mister;
Pois já somente amar é meu viver.

 

Se pois, no eido entretida
Não mais eu já for vista nem, achada,
Direis que estou perdida,
Que andando enamorada
Perdidiça me fiz, e estou lucrada.

 

De flores e esmeraldas
Pela frescura da manhã colhidas
Faremos as grinaldas
Em teu amor floridas
E num cabelo meu entretecidas.

 

Num cabelo somente
Que em meu colo voava e o advertiste;
Notaste-o e de repente
Nele preso Te viste
E eis que num de meus olhos te feriste.

 

E quando Tu me olhavas,
Sua graça em mim teus olhos imprimiam;
Por isso me adamavas
E nisso mereciam
Meus olhos adorar o que em Ti viam.

 

Não queiras desprezar-me,
Que se de cor morena me encontraste,
Já bem podes olhar-me,
Depois que Tu me olhaste,
Pois graça e formosura em mim deixaste.

 

A cândida pombinha
À arca com o ramo regressou
E já a rola minha
Ao sócio a quem amou
Junto às ribeiras verdes encontrou.

 

Na solidão vivia,
Na solidão foi pôr ninho guarido,
Na solidão a guia
A sós o seu Querido,
Também na solidão de amor ferido.

 

Gozemo-nos, meu Amado,
E vamos contemplar-te a formosura,
No monte e no quebrado,
Donde jorra água pura;
Entremos mais p’ra dentro na espessura.

 

E logo às mais erguidas
Cavernas do rochedo
Subiremos,
Que ali estão mais escondidas;
Ali nos embrenharemos
E o mosto das romãs saborearemos.

 

Ali me mostrarias
Aquilo que minha’alma pretendia,
E logo me darias,
Ó vida e alegria,
Aquilo que me deste noutro dia.

 

A aragem que perpassa
O descante da filomela amena,
O souto e a sua graça,
Pela noite serena
Com chama que consome e não dá pena.

 

Já ninguém o alcançava
E nem Aminadab aparecia
E o cerco sossegava
E a cavalaria,
Ao avistar as águas, descia.

(Trad. de M. P.)


[1]  «No Cântico Espiritual e na Viva Chama de Amor, entre metáforas e comparações esplêndidas – diz Fr. Silvério de Santa Teresa – tomadas quase todas da natureza, vai S. João da Cruz descobrindo em progressão ascendente as excelências do amor Divino nas almas, desde os graus mais inferiores aos mais elevados do desposório e matrimónio espiritual. Ninguém cantou melhor os amores divinos do que o Rouxinol do Carmelo e poucos terão cantado tão bem. Leiam-se estas estrofes que parecem fogo que inflama a alma no mesmo amor em que Deus se abrasa.»

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