A JOVEM POVEIRA
BEATRIZ MARQUES PINHEIRO
No trabalho que
dediquei ao Padre Pinho já mencionei a Beatriz Marques Pinheiro; mas não
transcrevi todo artigo que sobre ela escreveu. Ora ele é deveras interessante,
pois, por vezes, esta jovem parece uma Alexandrina ainda por desabrochar
plenamente.
Agora vai ficar
aqui na sua totalidade, como um exemplo das muitas Beatrizes, das «grandes
almas» que ele dirigiu em Portugal e no Brasil.
Recorde-se que o
artigo saiu no quinto número da
Cruzada Eucarística,
em Maio de 1930.
J. F.
«A Beatriz morreu… Lá foi no seu
caixãozinho branco para o cemitério, vestida de Cruzada Eucarística…
Mas
não, não morreu. Os Anjos não morrem; manda-os Deus à terra a derramar gotas de
bálsamo sobre as feridas dos que padecemos por nossos pecados: envia-no-los para
que nos apontem, de fronte erguida e olhar límpido como as estrelas, o roteiro
da Eternidade: e, depois de terminada a sua missão, vão-se, não morrem: voam
para o Céu.
A Beatriz era um anjo, não morreu;
cumpriu a sua missão e voou para o Céu. Foi-se com o abrir dos lilases para a
pátria que lhe pertencia, para a pátria dos inocentes.
Tinha razão quando há um ano, no retiro
espiritual, escrevia em seu caderninho de notas íntimas, que «esperava que a sua
cruz neste mundo não havia de demorar muito». Não durou muito: foi-se aos quinze
anos e meio, a 3 de Abril de 1930.
«Levai-me deste mundo para fora, que só
arrasta as almas para o pecado», dizia ela no mesmo caderninho. E Nosso Senhor
fez-lhe a vontade: levou-a antes que o mundo viesse empanar a limpidez da sua
inocência. Era zeladora da Cruzada das Crianças: o Coração Santíssimo de Jesus
veio buscá-la na véspera da primeira sexta-feira de Abril: queria lá neste dia
entre os coros dos Anjos a sua Zeladora, a sua organista — era ela a organista
da Igreja do Coração de Jesus da Póvoa de Varzim; desta vez já não tocará na
primeira sexta-feira: foi cantar no Céu os louvores eternos do Coração do Rei
Divino, do seu Divino Esposo, como ela mais de uma vez chama a Jesus em
seus apontamentos espirituais.
* * *
Beatriz Marques Pinheiro nasceu a 24 de
Setembro de 1914, dia de Nossa Senhora das Mercês, na Póvoa de Varzim. Seus
extremosos pais, o Sr. Francisco Manuel Pinheiro e a D. Beatriz Rosa Marques,
consideraram sempre como uma mercê da Virgem Maria, como um mimo do Céu esta
menina. Foi a penúltima a vir ao mundo dos 6 filhos e 4 filhas com que o Senhor
os prendou, mas era a primeira no amor que todos os de casa lhe dedicavam.
Desde os tenros anos, desde o berço
aprendeu ela de seus fervorosos progenitores a amar a Nosso Senhor, a praticar a
virtude, a aspirar ao Céu.
A 15 de Junho de 1922 entrava Jesus
Sacramentado pela primeira vez no coração da Beatriz, naquele coração que havia
de ser dele até à morte. E para logo começou a alimentar-se com frequência do
Pão dos Anjos. Era o seu Pão: a ele deveu conservar intacta até ao último
momento a sua virgindade.
Um dia aproximava-se ela de receber
Nosso Senhor numa comunhão geral.
— Ó menina — disse-lhe o irmão José — tu
já há tempo que te não confessas e foste comungar?
— É que eu não tenho pecados, que me
lembre.
Falava verdade. Ainda uns dez dias antes
de morrer, o confessor perguntou-lhe:
— A Beatriz quer reconciliar-se?
A resposta foi um sorriso.
— Então a menina ri-se?...
— É que eu não sei o que hei de dizer:
não me lembro de pecado nenhum.
Naquele coração nunca palpitou amor que
não fosse puro; por isso podia escrever com verdade e com uma simplicidade
encantadora num colóquio a seu Jesus: «quando estiverdes cansado, vireis
repousar ao meu coração».
Depois de Jesus e de Maria, as suas
meiguices iam todas para o seu pai, sua mãe e todos os que eram os seus. Era boa
com todas as suas amigas e companheiras de Colégio e por isso também era de
todas muito estimada, mas a sua particular afeição, a sua intimidade só a
confiava a alguma mais inocente com quem pudesse falar à vontade de Nosso
Senhor, da Cruzada Eucarística e dos seus desejos de se consagrar toda ao seu
Divino Esposo.
Aos dez anos, a 20 de Julho de 1924,
recebeu o santo sacramento da Confirmação: veio o Divino Espírito Santo
robustecer para as lutas dos 5 anos que lhe restavam de vida aquela alma
imaculada. E breve começou a sofrer; já há quatro anos tinha estado com dores
agudas às portas da morte, vítima da doença de coração que afinal a levou agora
para o Céu. Graças à intercessão de Santa Teresinha, a menina reparou quase
milagrosamente a saúde, senão de todo, ao menos o suficiente para ir continuando
a ser a alegria dos seus pais e seus irmãos que a estremeciam, e para frequentar
a instâncias suas como aluna externa as aulas do Colégio do Sagrado Coração de
Jesus da Póvoa de Varzim, onde já anos antes se tinha matriculado.
* * *
Foram tempos de bênção para a sua
alminha estes quatros anos de vida; foram anos de luz intensa a iluminar-lhe
nitidamente, sobrenaturalmente os primeiros passos. «Estamos neste mundo para
conseguir o nosso fim», escrevia ela aos 13 anos, com uma seriedade digna dos 30
— «Lembra-me muitas vezes que não valem nada as riquezas, honras, vaidades deste
mundo. Tudo isto há de acabar com a morte e para a Eternidade só nos
acompanharão as nossas obras». E mais adiante: «Há um só obstáculo na nossa
salvação, que é o pecado, que é a morte da alma».
O modo prático como ela procurava
enriquecer-se para a Eternidade exarou-o no mesmo caderninho quando escreveu:
«faço o propósito de, quando me levantar, oferecer logo (a N.S.) todas as minhas
potências, as obras, os pensamentos, as palavras, as acções, as palpitações do
meu coração, todos os passos que dou, todos os olhares…» E não se ficava só
nesta oferta matutina, mas procurava depois, durante o dia, que as suas obras
fossem dignas do Senhor.
«Faço o propósito de, quando estiver na
capela, estar com toda a reverência e meditar que estou na presença de Deus…»
Este propósito guardava-o a Beatriz, nem lhe mordia a consciência de o
transgredir deliberadamente. Chamava particularmente a atenção o respeito com
que se aproximava a receber Nosso Senhor Sacramentado nas suas frequentes, quase
diárias comunhões; não comungava diariamente porque nem sempre a saúde lho
permitia.
Era na Sagrada Comunhão que ela se
consagrava toda. Já de há tempos que não pensava senão sem ser toda de Jesus, em
viver só para Ele. «Tudo por Jesus, mas tudo sem excepção» – escrevia ela no seu
caderno. E noutro lugar tem esta passagem que, a par da sua piedade, nos mostra
claramente a seriedade e amadurecimento da sua virtude: «No dia 21 de Fevereiro,
último dia do retiro (foi em 1929), depois da comunhão, ouvi a voz do Bom
Jesus, que parecia chamar-me a uma vida mais santa, mais mortificada, vida mais
recolhida, a fim de naquela solidão salvar almas para Jesus.
Mas, Senhor, não me contento somente com
isto: quero seguir este chamamento, para satisfazer assim a vossa divina
Vontade. Mas como ainda nada posso fazer, preparar-me-ei com pequenos
sacrifícios. Irei comungar todos os dias que puder, em reparação de todas as
ofensas que se cometem por esse mundo fora contra o vosso amorosíssimo Coração.
Juntarei algumas mortificações e sacrifícios, para que Vós me ajudeis a levar a
Cruz.»
O desejo de salvar almas, de consolar e
desagravar a Nosso Senhor das ofensas que contra Ele se cometem alentavam-na a
não se poupar a sacrifícios e pequeninas mortificações, que generosamente
abraçava. Ainda no mês de Lourdes, em Fevereiro, em carta a seu irmão José, lhe
declarava que lhe custava muito ter que se levantar todos os dias às 5 e meia da
manhã para ir tocar à Igreja do Coração de Jesus, mas que fazia esse sacrifício
com muito gosto por amor de Nosso Senhor.
«Dai-me força para sofrer com paciência
todas as contrariedades, pois somos tão fracos que não sofremos nada por vosso
amor» — tem ela nas suas notas íntimas, e continua:
«E Vós sofrestes tudo por mim, destes o
próprio sangue até morrer na cruz, apesar de ser pecadora. Coroai o meu coração
de espinhos para castigo e correcção de meus pecados e pelos de todos os que por
esse mundo não pensam senão em divertimentos, não se lembrando que para a
Eternidade só é preciso uma coisa: a salvação das almas. Peço-Vos pois que me
ajudeis a levar a minha cruz que espero não demorar muito. Dai-me uma vocação
mais firme, para que em breve possa dizer: Eu sou a esposa de Jesus.» Nesta
ânsia de se dar toda a Jesus, para por Ele se sacrificar e Lhe dar muitas almas,
estava determinada a fazer-se religiosa, se Nosso Senhor lhe conservasse a vida;
e esta graça pedia a N. S. cada dia com todo o fervor, mas desta sua resolução
não falou senão a algumas das suas mais íntimas amigas. É que a Beatriz foi
sempre extremamente prudente e recatada em falar de suas coisas: era
naturalmente humilde, modesta, despretensiosa, sem assomos de vaidade. Quem a
contemplava tão simples, tão ingénua, sempre tão alegre, via nela é certo um
anjo, porque a inocência não se encobre, mas não adivinhava facilmente a solidez
e madureza da sua virtude e sobretudo o seu espírito de zelo e de amor ao
sacrifício. Entretanto, ia exercitando o seu zelo em ensinar o catecismo,
primeiro 3 anos na Igreja Matriz e ultimamente na de N. Sra. das Dores; os seus
deveres de zeladora da C. E. cumpria-os com rigor.
Tinha-se oferecido a Nosso Senhor para
sofrer como vítima pelos pecadores, e o Bom Jesus aceitou a sua oferta: os
últimos 40 dias que levou no leito crivada de dores são prova evidente desta
aceitação do Senhor. Quantas noites passou sem dormir, porque as dores não lho
permitiam!
— A menina tem oferecido a N. S. as suas
dores pelos pecadores? — perguntava-lhe uns quinze dias antes da morte o
confessor.
— Estou sempre a oferecê-las.
— E aceita tudo das mãos de N. S. com
amor?
— Aceito sim!
Por isso levou a doença até à morte sem
se impacientar; quando os sofrimentos a apertavam mais, havia apenas um leve
gemido, que a custo lhe escapava dos lábios. A quem na doença lhe dizia: temos
pedido muito a N. S. pelas suas melhoras, respondia: «Pois eu não peço nada».
Apesar da sua doença, não deixou até às vésperas da morte de ajoelhar-se na cama
para fazer as suas orações da noite.
O dia de S. José foi um grande dia para
a Beatriz; já de há muito que consagrava cada dia a Nosso Senhor o seu coração,
a sua alma e, de um modo especial, a sua virgindade; mas no dia do glorioso
patriarca S. José quis expressamente fazer voto da sua pureza ao seu Divino
Esposo. Era a última e definitiva entrega de uma alma toda enamorada de Jesus.
Para isso reconciliou-se e pediu que lhe trouxessem a casa a Nosso Senhor.
Depois da comunhão, a mãe estranhou o especial recolhimento e demora com que a
sua filhinha se entreteve em colóquios com o Senhor, mas não suspeitou do que se
tratava; só depois da morte é que soube que Jesus, enamorado da sua Beatriz, se
apressou em vir buscá-la para as bodas eternas, em prémio dessa sua entrega tão
generosa.
A sua morte foi a de uma alma
predestinada. Na quinta-feira, 3 de Abril, era chamado a toda a pressa o padre
que lhe ia assistir aos últimos momentos: seria pela volta das nove da manhã.
Confessou-a, administrou-lhe o Sagrado Viático, deu com ela uma breve acção de
graças, na qual a menina renovou com todo o fervor o seu voto de castidade e
virgindade ao Senhor e fez tranquila o acto de aceitação da morte das mãos de
Nosso Senhor, declarando que queria tudo o que Deus quisesse. As dores agudas
eram contínuas, mas não se queixava, apesar de em posição nenhuma encontrar
alívio: quando o padre lhe disse que N. S. na Cruz também em posição nenhuma
encontrava alívio para as suas dores, mostrou a Beatriz na atenção e expressão
do olhar que desejava naquela sua tortura parecer-se com a do seu Divino Esposo.
Antes de chegar o sacerdote, a menina
tinha declarado com firmeza a seu pai e sua mãe que morreria nesse dia; às 10 e
meia, agravando-se o seu estado, veio de novo o sacerdote que se tinha retirado
e administrou-lhe a Extrema-Unção, que a Beatriz recebeu com perfeito
conhecimento. Quando principiava a aplicar-lhe a indulgência plenária para a
hora da morte, entrava em suave agonia e às 10h10 da manhã partia para o Céu
entre as lágrimas e saudades dos numerosos circunstantes que lhe assistiram ao
último momento.
Essas lágrimas de saudade e dos muitos
visitantes que vieram dar os pêsames a seus pais, e o numeroso préstito das
diferentes corporações a acompanharam à sepultura foram uma glorificação logo
após a morte daquela que não queria a vida senão para glorificar a Jesus.
Nas exéquias ocupavam lugar de destaque
as crianças da Cruzada Eucarística que como um bando de anjos foram ladeando até
à sepultura o seu caixão.
A Beatriz lá do Céu ficará sendo a
protectora da Cruzada Eucarística em Portugal.
M.P.
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